Piedad Bonnett
Questões sobre literatura, família e suicídio

Piedad Bonnett pertence a um grupo de escritores incomuns: aqueles que alçam voos altos tanto na prosa quanto na poesia. Mas isso demorou a ficar claro — principalmente para ela. Professora na Universidade de Los Andes, em Bogotá, sua dedicação artística foi exclusiva aos versos por duas décadas. Não por escolha: atarefada entre a docência e a maternidade, a autora só se via com tempo para formas breves e condensadas. Foram cinco livros de poemas até a virada do século, com destaque para o de estreia, De círculo y ceniza, de 1989, e El hilo de los dias, vencedor do Prêmio Nacional de Poesia da Colômbia, de 1995. “Durante quase quinze anos fui uma escritora insegura e relativamente estéril”, Piedad disse ao MUTUM. “Quando comecei a escrever romances, minhas condições eram mais favoráveis.”
Em 2001, aos 50 anos, Piedad publicou enfim o primeiro romance, Después de todo, ficção que aborda, entre outros temas, a desconfiança de personagens femininas em torno das ideias de completude e felicidade. Depois deste, viriam mais sete. Dentre eles, o livro que trouxe fama internacional à autora: O que no tiene nombre, de 2013, publicado no Brasil pela DBA, uma autoficção que retrata o suicídio do seu filho Daniel.
Piedad escreve com franqueza ímpar sobre o suicídio. Não cai na armadilha dos livros que mitificam a loucura e tratam os doentes mentais como atrações exóticas de um safári social. A linguagem literária se revela, neste e em outros livros da autora, como um meio cambiante para refletir sobre como as dores familiares moldam cada um de nós. Foi sobre esse aspecto de sua obra que Piedad, hoje com 73 anos, conversou conosco.
Em O que não tem nome, você não adota eufemismos. Deixa claro que prefere que o caso de seu filho seja tratado de forma direta: Daniel se matou ao se jogar da varanda. Poderia explicar por quê?
É uma declaração de princípios, uma decisão política, ética. Acredito, como escreve Rushdie, que a vida deve ser vivida até que não possa mais ser vivida. Acredito na dignidade do suicídio, na necessidade de compreendê-lo, aceitá-lo e de lutar contra o estigma.
No livro, você diz que não escreve sobre a morte do seu filho com intenções de cura. O que te motivou a escrevê-lo?
A escrita é sempre uma forma de indagação, de conhecimento. Em O que não tem nome ela me serviu para fazer um balanço dos acontecimentos, para entender os erros cometidos e para tomar uma posição sobre muitos temas – o suicídio, a prática psiquiátrica, a medicação. Mas, acima de tudo, serviu para entender melhor quem foi meu filho e recuperá-lo por meio das palavras, dando-lhe uma última oportunidade de viver, ainda que de forma fictícia, nas páginas de um livro.
Embora descreva vivências muito dolorosas, o texto nunca perde o equilíbrio entre a delicadeza e a sobriedade. Foi difícil o processo de editar o texto, reler os trechos e ajustá-los ao tom que você queria?
Foi tão difícil quanto qualquer outro livro anterior. Eu tinha a vantagem de conhecer o curso da história, o seu final. E deixei que minha intuição e minha memória fossem criando a estrutura fragmentada que escolhi. De qualquer forma, me propus de forma muito clara a não cair em exageros, sentimentalismos ou idealizações do meu filho. O que tornou a escrita difícil – pois comecei a escrevê-lo dois meses após sua morte – foi a dor. Muitas vezes as lembranças me faziam chorar. Mas buscar as palavras, as formas, me devolvia a serenidade que eu precisava para escrever.
Você acha que sua escrita mudou depois desse livro?
Não. Ela já havia mudado, principalmente na minha poesia. Em Las herencias, o livro que publiquei em 2008, quando já sabia que Daniel tinha uma doença mental e, portanto, um futuro incerto, minha voz se tornou mais lacônica, mais crua, talvez mais dura e essencial.
Talvez a principal reflexão do livro seja sobre a linguagem. Em uma passagem memorável, você escreve que, enquanto não consegue nomear as dores de ter perdido seu filho, também fala da certeza dos médicos ao dar nomes aos sofrimentos psíquicos. Como você enxerga o impasse contemporâneo de termos nomenclaturas cada vez mais específicas para os transtornos mentais?
Uma consequência da especialização médica e psiquiátrica é essa ânsia de nomear, descrever, definir, e não critico esse desejo da ciência. É assim que ela age, com fins terapêuticos. O problema é que estão classificando o inclassificável. Cada paciente vive a doença de maneira muito distinta. Daniel, por exemplo, com um transtorno esquizoafetivo, algo muito grave, foi durante dez anos um jovem “funcional” – como chamam – que fez uma carreira, passou por quatro universidades norte-americanas, teve grandes amores, deixou uma obra considerável e de altíssimo nível. Esse mesmo rótulo em outro paciente não define a mesma coisa.
Uma das referências citadas em O que não tem nome é Annie Ernaux. Seu livro se assemelha a alguns livros da autora, como O Acontecimento, que também parte de um trauma. Como você classificaria seu livro? É uma autoficção, uma não- ficção ou simplesmente literatura?
Eu diria que é não-ficção, no sentido de que, ao escrevê-lo, fiz um pacto com a verdade. Com a minha verdade, claro, a única que posso assumir. Mas o que eu quis fazer — e acredito que consegui — foi literatura, não jornalismo. Nesse sentido, me sinto muito próxima de Annie Ernaux.
Daniel foi retratado de maneira tão vívida que já disseram que ele se tornou “um personagem memorável da literatura”. Como você enxerga essa transformação de seu filho em uma figura literária, ou seja, uma figura da ficção?
Quando percebi que Daniel havia entrado na literatura como mais um personagem — que as pessoas amam, compadecem, entendem —, fiquei muito comovida, porque nunca tive esse objetivo. Quando meus leitores me fizeram ver isso, senti uma gratidão enorme.
Ao longo da sua obra, você aborda de maneiras diferentes a ideia de que há uma parte da personalidade dos filhos que é inacessível para uma mãe. Como a literatura te ajudou a lidar com essas questões complexas inerentes à maternidade?
Nós, mães, sabemos que nossos filhos não nos pertencem e que têm todo o direito de viver sua intimidade de forma reservada, sem a necessidade de compartilhá-la conosco. Eu tentei investigar como seus amigos, professores e ex-namoradas o viam para compreendê-lo melhor. Mas não quis ir além do que ele teria desejado, por respeito à sua memória.
Em outras obras suas, as relações familiares são tratadas de forma crítica e melancólica. Um exemplo é Qué hacer con esos pedazos, em que uma reforma na cozinha funciona como pano de fundo para a exposição de relações problemáticas. Podemos considerar que a família é tudo isso: uma base e infelicidades compartilhadas?
A família é um tema que sempre me interessou, tanto na poesia quanto na narrativa. Acredito que é um tema antigo na literatura, desde os gregos, passando por Shakespeare e por toda a novela moderna. Está presente nos grandes romancistas do século XIX e na narrativa contemporânea. Na vida e na literatura, a família é tanto uma organização que dá suporte ao indivíduo quanto um lugar de conflitos, dores e desavenças.
Você acha que nós, latino-americanos, exageramos a importância da família?
Sim, absolutamente. Somos sentimentais e crescemos em uma cultura que a mitifica.
Poderia dar exemplos dessa mitificação?
Já na publicidade vemos isso de maneira muito clara, com uma romantização da família que muitas vezes ganha tons cor de rosa. Além disso, há uma deificação da mãe, que é evidente na cultura do narcotráfico, por exemplo, mas também em outros contextos, como a tendência a organizar a vida cotidiana em torno da família extensa: avós, tios, sobrinhos. Isso não acontece da mesma forma em outras culturas.
Em Qué hacer con esos pedazos há trechos que abordam o distanciamento e os julgamentos severos dos filhos em relação aos pais. Estamos todos condenados a cometer esse erro e a enfrentar essa culpa no futuro?
Acredito que sim. Os filhos somos implacáveis. Só começamos a compreender nossos pais – ou a nos interessar por suas vidas e passados – quando chegamos à maturidade, ou às vezes quando eles já estão muito velhos ou já morreram.
Como foi a recepção da sua família a O que não tem nome, livro em que aparecem nominalmente?
Foi boa. Eu fiz com que minhas filhas e meu marido lessem o livro para saber o que pensavam. E, embora tenha sido duro para eles, me disseram que se emocionaram, mas que sentiam que o livro fazia justiça à verdade.
No poema “Dolores de família”, você termina com o verso: Inevitables,/ las espinas tan cerca,/ tan punzantes (Inevitáveis,/ os espinhos tão perto,/ tão pontiagudos). Como lidar com os espinhos infamiliares?
Busco ajuda nos afetos. Os amigos, o humor, a leitura. As coisas boas da vida.
E como foi o processo de reencontrar as coisas boas da vida depois da perda?
Bem, trata-se de não se ancorar em um luto patológico, de reestruturar-se a partir da perda revisando nossos valores e crenças e de buscar um sentido para nossos dias. Temos muitos pontos de apoio possíveis. Para mim, a literatura, a amizade e o amor pelos meus entes queridos são fundamentais.
Piedad Bonnett nasceu em Amalfi, na Colômbia, em 1951.
Consulte a página de Piedad Bonnett no acervo de MUTUM
Leia seis poemas da autora em Imaginações