os vãos entre brasil e argentina

João do Rio

O cronista João do Rio. Crédito: Arquivo nacional

Publicado na edição de 1º de maio de 1915 do Gazeta de Notícias, este artigo retrata o período de tensão entre Brasil e Argentina que se estendia desde o fim da Guerra do Paraguai, em 1870. Ambos os países temiam o fortalecimento do outro e não escondiam o desprezo em relação ao vizinho. Já consagrado no jornal e com público fiel de leitores, João do Rio viajou ao país portenho e expôs numa série de crônicas o deslumbramento com o aspecto londrino de Buenos Aires. Para o autor, que conhecia bem a Europa, a capital argentina era um modelo a seguir. No texto abaixo, reproduzido na íntegra, é possível notar que João, a exemplo de intelectuais dos dois países, desejava que a parte sul do continente se unisse e formasse uma força política mundial.

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O maior dos simulacros é o da História. O jornal é a eleição diária desse simulacro. Os que estudarem dentro de uma centena de anos o atual momento sul-americano, mesmo sem ironia, rirão e fartamente destes povos inteligentes. Na América do Sul, onde se desenvolve a mesma raça ibérica caldeada pelos mesmos elementos íncolas e pelas mesmas correntes de imigração, os governos, os jornais e os povos de uma dúzia de países passaram um século ignorando-se mutuamente, mesmo quando se julgavam rivais, enquanto sonhavam com as atrizes de Paris, os subsolos onestepeanos de Londres e os transatlânticos. 

Em Bogotá ou em Lima há uma ideia menos exata do Brasil do que das cidades do interior da África, onde se fala inglês. No Rio de Janeiro é difícil encontrar um cavalheiro que não descreva Paris, mas a nossa própria e reconhecida facilidade no estudo da geografia geral emperra em se tratando da América. Desconhecemo-nos maravilhosamente!

Com alguns países o mútuo desconhecimento é acompanhado de uma ardente e até então nada prática simpatia. Assim Chile e Brasil. Desde os fins da monarquia exuberantemente somos irmãos, somos amigos, amamo-nos de longe. No regime parlamentar do Chile os governos sucedem-se vertiginosamente. No nosso organismo federativo os presidentes mantêm mais ou menos os seus ministros — secretários, como afirma o Sr. Wenceslau quando está sem eles — e os erros se sucedem também vertiginosamente. Mas em vinte e cinco anos, num quarto de século de ternura entre Chile e Brasil, nada se fez que ligasse por laços práticos, por aproximações mentais o Chile e o Brasil. 

Com a Argentina e nós outros os aspectos variam, mas o caso é ainda mais escandaloso. Temos de repente assomos de reflexão de ambos os lados. A tradução desses assomos é feita, porém, apenas com embaixadas. O desconhecimento mútuo permite de cada lado desconfianças e o trabalho de exploradores ocasionais. Assim, no melhor da festa, quando tudo é aplauso, estala no Brasil a ideia de que a Argentina começa a preparar-se… Para quê? O exército, a marinha, o ódio… Ao mesmo tempo surge a mesma infâmia na Argentina contra o Brasil. Alguns jornais alimentam o fogo sagrado, a tal ponto que os leitores do Brasil imaginam Buenos Aires com a preocupação raivosa de nos atacar e muita gente na Argentina pensa o Rio de Janeiro no mesmo estado de espírito. Tríplice disparate, pelo disparate em si, pelo atestado de mútuo desconhecimento e pela ausência absoluta do espírito americano que nos deve dar a força externa na balança internacional. 

Há na política inter-americana uma grande figura, que ainda não pôde ser convenientemente estudada: Rio Branco. Para mim, a América do Sul dever-lhe-á o desabrocho do sentimento sul-continental, e a criação no mundo da nossa representação internacional. Patriota, orgulhoso, enérgico, ele impeliu o Brasil; e agitou toda a América. Mesmo os países que não tiveram que lhe agradecer os excessos de cordialidade, devem-lhe o ter despertado a noção coletiva de força e a insegurança de combates sem motivos práticos. A obra do Sr. chanceler Muller, homem prodigiosamente inteligente da cabeça aos pés — essa grande obra de soldação dos países sul-americanos em saldunes definitivos — é uma consequência do movimento geral causado pelos nove anos de chancelaria do barão.

Neste momento, porém, o que parece irritante é a ideia de hostilidade mesmo longiqua dos argentinos pelos brasileiros. A Argentina é um grande país, rico e civilizado. Perfeitamente civilizado à latina. Buenos Aires, seu padrão, rutila como o atestado. Quais os sentimentos dessa cidade se indagarmos um pouco as correntes de opinião, se ouvimos as palestras dos membros do joquéi como dos transeuntes das ruas, dos estadistas como da gente do povo? Os sentimentos são os inerentes à população cosmopolita de uma grande cidade comercial exportadora, centro de operações de dinheiro. 

Buenos Aires é a Londres gaúcha, a Londres do Pampa. 

Toda aquela gente trabalha, toda aquela gente quer prosperar, toda aquela gente visa a riqueza, toda aquela gente tem terras produtivas ou negocia na produção dessas terras ou almeja possuí-las. O rio da Prata é uma espécie de Tamisa. Os homens ricos, como na Inglaterra, têm fortunas colossais e refinaram o tom inglês no apuro discreto das roupas e na exibição um pouco babilônica do conforto externo. O ar britânico envolve os aspectos da bolsa e mesmo alguns aspectos populares. A maneira de viver da alta sociedade é da sociedade inglesa. O argentino, como o inglês, fez do clube parte de sua vida, o selem-lick ocidental. O recato da família é inteiramente inglês. A vida noturna, para a vista de todos, acaba a mesma hora que em Londres, posto que como em Londres haja a possibilidade de “flats” alegres toda a noite. Os prazeres são os mesmos que na capital do Reino Unido. As corridas de cavalo são uma das coisas mais sérias e mais elegantes. O hipódromo não é Auteuil, nem Longchamps. É um prado de Londres. A tendência para espraiar a cidade ainda é de Londres.

Um cavalheiro lido, a quem eu dava conta dessas minhas impressões, falando ainda da solidez física do argentino, dos “sports” atléticos, da preocupação da saúde, que é ainda mais violenta em Buenos Aires que em Londres, a começar pelas escolas, disse-me:

— No fundo não é adaptação, é a própria formação, a origem de homens do ar livre, a alimentação sangrenta,  mil coisas mínimas que formam o todo. 

Em Buenos Aires talvez só uma coisa demonstre o sangue espanhol, ou a juventude do povo, porque não é um sentimento particular de cada um, mas um aspecto coletivo: a satisfação de ter feito tudo aquilo e de fazer de mais com uma tremenda confiança no amanhã. 

Dada essa feição moral e prática do argentino, e sabendo-se (mesmo em Buenos Aires que estabele o desequilíbrio formidável na República) que o seu grande problema é ainda a corrente migratória, a necessidade de muito mais gente, vemos de modo claro o temperamento fantasista dos que imaginam esse povo saudável e equilibrado com a ideia fixa de hostilidades brasileiras. Ninguém cuida disso, aliás também no Rio  ninguém pensa em tal coisa. Quando alguns jornais fazem agressões ao Brasil, essa agressões são “bromas”. E é de notar o calor da hospitalidade com que nos recebem, assim como nós procuramos recebê-los. 

Certo, a Argentina conhece o Brasil como o Brasil a Argentina, isto é, quase nada. Certo, a Argentina tem uma armada, cujas unidades aumenta, e nós temos outra. Certo, a Argentina tem um exército perfeitamente preparado como qualquer país contemporâneo, para a própria defesa, como o nosso é, não para os cargos políticos mas para a nossa defesa. Mas essas provas de força não poderiam nunca ser postas em confronto. Tudo ordena o contrário. E a prova dos sentimentos dos povos que não se enganam nunca é que, quando a Argentina envia um amigo do Brasil ao Brasil, é o povo que o reclama, e quando a Argentina recebe um brasileiro amigo, recebe-o com um carinho desvanecedor. Mais: é um povo que esquece provas de amizade, apesar do seu justo orgulho. 

Noto essas impressões no momento em que se prepara a apoteose da entrada fraternal de três países como mediadores de paz na América do Norte. O momento é de deixar como vulgarmente se poderia dizer: o namoro pelo consórcio tão bem definido pela frase lapidar de Sáenz Peña. E consórcio entre nações se faz pelos tratados comerciais, pela permuta das riquezas naturais, pelo íntimo conhecimento, pelo intercâmbio mental. Cada um de nós pôde amar seu país sendo americano. E esse sentimento é o aumento e o desenvolvimento da riqueza de todos e mesmo, não só a afirmação coletiva na balança externa, mas a formação, a criação afinal de uma parte do mundo que, se existe fisicamente, começa apenas agora a sua existência moral. 

E como poeticamente talvez eu dissesse tais coisas a conversar com o ministro Murature, o ministro, que é silencioso e inteiramente britânico, disse-me num de seus raros sorrisos:

— Vamos receber Lauro Muller

Era como se dissesse: comecemos!

(Publicado em 1915 n’A Gazeta de Notícias com o título “Brasil-Argentina”)


João do Rio foi o pseudônimo do escritor, cronista, repórter e teatrólogo Paulo Barreto, um dos nomes mais marcantes da literatura e do jornalismo brasileiros do início do século 20. Nasceu e morreu no Rio de Janeiro, aos 40 anos.

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