O medo
conto de Silvina Ocampo

Querida Alejandra: me vem à memória a cotovia do bosque, aquela que me salvava com seu canto de todos os medos. Você tinha medo e deixava por isso a porta aberta para mim. Me obrigava a deixá-la aberta. Eu deixo fechada porque tenho medo. Estou em uma casa enorme, quase desabitada. No primeiro andar, o pessoal saiu de férias; no segundo, ninguém mora porque o piso está em reforma; no terceiro, ninguém, porque está à venda; no quarto, duas pessoas em meio a uma multidão de quadros; no quinto, eu; no último, lavadeiros imprevisíveis. Por todos os lados se pode entrar nessa casa: pelo terraço, que tem numerosas portas de vidro; pelo térreo, que tem várias entradas arbitrárias abertas; pelas janelas sem persianas que se abrem sobre um jardim abandonado. Em que parte do corpo se localiza o medo? Em que parte se multiplica? No centro do peito? No nascimento da garganta vai descendo até o estômago, se demora nas pernas, nos joelhos preferencialmente, e chega até os pés, sobe de novo e castiga os braços, põe luvas nas mãos e um corpete apertadíssimo no peito. Eu aconselharia não consultar nenhum espelho quando o medo coloca a mão sobre a garganta. A supressão do medo causa estragos, não permite que o cabelo obedeça a nenhuma escova, a nenhum pente. Ajoelhar-se não é possível, sentar-se tampouco, colocar-se de pé não é admissível, ainda que se queira fugir a todo custo e se tente fazê-lo. A petrificação é inevitável. A sensação de ser pedra ou de ser gelo ou de ser objeto ferido que inveja a sorte de qualquer homem que está passando pela rua. O coração bate, único sinal de vida que não deixa respirar. As madeiras rangem, toca uma campainha. Quem é? Quando me aproximo da porta, a campainha para de tocar. Quem? Ninguém responde. Volta a tocar. Quem chama? Ninguém responde. Então, então, o que me ocorre? Nasce a ideia da salvação, para não estar sozinha, porque a salvação está em conseguir que o medo resida talvez em grande parte na solidão. Se uma voz não responde, surge o medo que responde. Quis ardentemente ser duas pessoas. Nunca Deus deixou de ouvir minhas súplicas. Apliquei-me durante anos em ser duas pessoas. Que ninguém diga que sou frívola ou mentirosa. Há muitos medos, tantos como fios de cabelo temos na cabeça, que invadiram a televisão que até dão vontade de não escrever sobre eles nem pensar neles. O medo da escuridão, da luz, da nitidez, da imprecisão; o medo do conhecimento e da ignorância; o medo de esperar, de deixar de esperar; o medo da infância, da maturidade, da velhice, de idade nenhuma; o medo de si mesmo, do objetivo panorâmico, do objetivo microscópico, do deslocamento, da desaparição, da penumbra, da imobilidade, dos homens com cara de animal, dos animais com cara de homem, das entranhas da terra, das próprias entranhas, do silêncio absoluto, do ruído, do que veem nossos olhos, do que se esconde, do que a mão apalpa, da violência da inércia, da sociedade, do apetite, de vegetar, de rememorar, de esquecer, do conglomerado do nada, do divino, do diabólico, de ser ou não ser, dos astros, do sobre-humano, do humano, de bramar, da transformação, da transmigração do pranto, prólogo da ausência, do tremor próximo da presença, do pó que oblitera as formas, do aspirador que as renova, do grito, de todas as formas dos relógios e dos espetáculos, do reino dos insetos e da crueldade, disfarce da bondade que ninguém percebe, das joias com duas caras e dois rabos, da paisagem que nunca voltará, das palavras que perdem o sentido e que se ocultam dentro do mais sereno dos pensamentos, como em uma caixa de fósforos, os fósforos já usados, ou os estames das magnólias abertas demais.
Como se consegue essa dualidade? Não é fácil. Se consegue sem querer, às vezes. Não são agradáveis os exercícios a que é preciso se submeter. Se começa pela sombra projetada na areia, que se afasta e se aproxima, para conseguir que a sombra tenha sua individualidade; depois, através do sonho, é preciso renunciar a uma parte importante da nutrição; às laranjas, se você gosta de laranjas, ao espinafre, se você gosta de espinafre, como dizia minha amiga, ao sentimento da posse absoluta, ao prazer, à habilidade para recriar por qualquer arte a música, à amizade no amor. Após vários anos de sacrifício agrega-se a nosso ser outro ser como um gêmeo que ninguém vê mas que está latente com sua voz própria, com os apetites, com seu domínio; mas isso se consegue depois de um número infinito e sucessivo de orgasmos que vão formando a vida desse ser abstruso. Desse modo consegui o orgulho mais absoluto, o de ser dual, não o orgulho de não ter medo. Perambulei por casas imensas, vazias, dormindo sobre a frieza das lajotas ou dos carpetes. Penetrei em bosques onde a luz do céu não chegava, sem medo porque estava acompanhada, onde as trepadeiras eram animais pré-históricos. Alojei-me em um hotel sem ar, onde as paisagens e o céu pintado eram janelas que não se abrem, e as poltronas eram braços e pés de pessoas, os banheiros milhões de mosquitos que projetavam crocodilos diminutos que lançavam uma água verde pelas mandíbulas. Cheguei a uma cidade onde os homens não falavam, só gesticulavam se queixando, sem medo porque ríamos juntos da voz gutural dos moradores estranhos, vestidos com penas. Quando não há medo não há vontade de morrer e o atroz se torna lindo, de modo que tudo o que não tinha me agradado antes começou a me agradar. A felicidade nasceu. Tudo é felicidade porque o abstruso governa o mundo, o impossível também. Me diz agora se vale a pena morrer. Em minha próxima carta te contarei minhas aventuras deste mundo.
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Silvina Ocampo nasceu em 1903, em Buenos Aires, Argentina. Escritora, poeta, contista e tradutora, é reconhecida como uma das vozes mais originais da literatura do século 20 em língua espanhola.
O conto acima, traduzido por Catarina Lara, foi originalmente publicado em Cornelia frente al espejo, de 1988.
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