três poemas raros de Adão ventura

“É preciso asfixiar os camaleões”

Sunlight on the Harlem River (1919), Ernest Lawson. Artvee/ Domínio público


RIO PAMPÃ

suas danças d’água, seus brinquedos de lua,
seus meninos pescadores, seus sonos-sonhos
em paredes de taipas, suas comidinhas de fogão a lenha,
seus candeeiros iluminados de estrelas,
suas trempes ao relento

Rio Pampã
cobra-novela,
indo e vindo em pés-sopés-montanhas,
pavoneando cidades de águas formosas,
cochilando lembranças em moirões de porteiras,

Rio Pampã
dos índios maxacalis
(não os emoldurados em revistas e TVs)
não os das facas afiadas e peitos largos
na correnteza dos ventos

Rio Pampã
das modas de viola e da cachaça de Zé de Vieira

*

UMA TERRÍVEL ESPERA DE GODOT?

– talvez máscaras,

máscaras de um escravo
no fundo de uma mina de morro velho

e o coração
corroído
pelo PÓ.

ou
talvez alguns senhores
de punhos rendados
que em refinadas mesas de jacarandá
navegam no subterfúgio das palavras.

ao leitor:
a montagem do cenário
e a confecção do figurino.

*

POESIA: MERAS SUGESTÕES

É preciso despojar a poesia do cinza das gravatas,
afastá-la das penumbras dos gabinetes,
exumá-la do espaço das grandes mesas de jacarandá
e seus punhos rendados.

É preciso desmascarar urgente o verniz mentiroso
das palavras
e o subterfúgio das reticências.

É preciso asfixiar os camaleões.

É preciso soltar os porcos
e sangrá-los.

*

Adão Ventura nasceu em 1939, em Santo Antônio do Itambé, em Minas Gerais, no Brasil. Poeta e prosador, foi uma das vozes mais originais da literatura brasileira na segunda metade do século 20. Morreu aos 65 anos.


Os versos acima são da seção “Outros poemas” de A cor da pele – poesia reunida, lançada em novembro de 2025 pela coleção Círculo de Poemas, da editora Fósforo. Os poemas eram inéditos em livro até então.

Consulte a página de Adão Ventura no acervo de MUTUM
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