Roberto Bolaño pergunta a

Edimilson de almeida pereira

Foto: Carlos Mendonça/Divulgação
Questionário Fantasma #1

Com ajuda da inteligência artificial e do kardecismo de ocasião, convocamos o espírito de autores mortos para perguntar o que escritores vivos pensam sobre literatura

O mineiro Edimilson de Almeida Pereira pisou no terreno da poesia quando tudo era mato e restos de concreto. Publicou Dormundo, seu primeiro livro, em 1985. Tinha apenas 22 anos e vivia em Juiz de Fora, cidade em que nasceu.

O poeta não se limitou ao impulso juvenil. Construiu uma obra vasta e se tornou um dos principais nomes da literatura brasileira. Há quatro décadas suas vozes entrelaçam, em tensão fértil, as chagas históricas do país, a melancolia e o diálogo com autores como Cruz e Sousa, Paul Valéry e Derek Walcott.

Edimilson se destacou também na prosa. Em 2020, lançou a trilogia “Náusea” por três editoras: Front (Nós), O Ausente (Relicário) e Um Corpo à Deriva (Macondo). As ficções lhe renderam o 14º Prêmio São Paulo de Literatura em 2021 e o segundo lugar no Prêmio Oceanos.

O grande norte do mineiro, no entanto, nunca deixou de ser a poesia. Seu espírito lírico perpassa cada linha, versificada ou não, ficcional ou não, como se fosse impossível dissociar criação e pensamento. Para ele, talvez pensar seja como escrever um poema.

Nesta primeira edição do Questionário Fantasma, convidamos o mineiro para responder a perguntas de outro escritor de alma parecida: o chileno Roberto Bolaño (1953-2003), romancista consagrado por Os detetives selvagens e 2666, mas que dizia ser, antes de tudo, um poeta.

As perguntas espectrais, obtidas por meio de uma inteligência artificial bem treinada, saíram como algo que o Bolaño talvez rejeitasse depois de ter escrito: com um romantismo selvagem que pode soar, para muitos, como algo exagerado e até afetado. Mas não para nós.

Pergunte, Roberto.

E responda, por favor, Edimilson.

Bolaño: O que significa ser poeta num mundo de patifes da mercadoria?
Edimilson: Penso no poeta como um sujeito da dissonância. Isso implica, por exemplo, posicionar-se como uma diferença em relação ao aviltamento da linguagem e à subserviência às regras do mercado evidentes nos dias de hoje.

Qual seria a covardia máxima que um escritor latino-americano poderia cometer?
Trair a si mesmo para estar de acordo com o senso comum.

E qual seria o maior ato de bravura de um poeta?
Sobreviver para nos ajudar a entender a vida além do senso comum.

Se pudesse arrancar um clichê da poesia, qual seria?
O sentimentalismo.

Que poeta, bom ou ruim, te faz ficar em silêncio absoluto?
Algumas/alguns: Cecília Meireles, Orides Fontela, Rilke, Takuboku Ishikawa, Bashô.

E que poeta merece ser lido em voz alta em um bar prestes a fechar?
Alguns/algumas: Maiakovski, Dylan Thomas, Seamus Heaney, Arlindo Barbeitos, Silvia Plath, Paula Tavares, Derek Walcott.

Então prefere os poetas fantasmas, como eu, aos contemporâneos?
Entre meus contemporâneos me fascina a poética de Josely Vianna-Baptista. Embora não tenha um altar, convivo bem com alguns fantasmas.

Quando você termina um livro, quem vagueia pela sua mente?
Em geral, penso em alguém quando começo um livro. Quando escrevi o Guelras (2017), pensei nas crianças afagadas por um ditador numa cerimônia pública; o homeless (2010), num ancião olhando Sirius no céu do Mali; já o romance Um corpo à deriva (2020), na cantora Elizeth Cardoso fotografada na época de ouro do Rádio, no Rio de Janeiro. E assim segue o jogo entre pessoas/ texto/ pensamento.

Se pudesse habitar o corpo de outro escritor por alguns dias, de quem roubaria a pele e talvez os ossos?
Pier Paolo Pasolini.

Qual foi o verso que lhe estremeceu e mudou sua vida?
“E a Casa durava, sob a árvore de plumas.” (“Et la Maison durait, sous les arbres à plumes.”) – Saint-John Perse (“Elogios”)

E qual verso seu você gostaria que durasse para sempre?
Por ironia, um fragmento do poema “Estilo” incluído no livro Rebojo, de 1995:

Compreendam a razão
de evitar estátuas.
São mais elegantes o vento
e seu martelo
.”

algo em seus livros que, se pudesse, você desmembraria ou rearranjaria para que brilhasse de outra maneira?
Há sempre mudanças para serem feitas nos livros. Um exemplo: em vez de publicar separadamente os volumes Relva, Guelras e Melro eu os reeditaria num volume único para dar relevo à trilogia Melancolia, um painel filosófico da última década no Ocidente.

Qual é a sua ferida mais antiga, aquela que sempre vai acompanhar sua escrita como sombra?
A sensação de que a linguagem é incapaz de traduzir os eventos realmente importantes da vida.

Você se senta diante da página em branco e o coração não bate bem. Do que seria esse medo?
Ser lido e não ser compreendido.

Tem alguma mania de poeta que você cultiva que ninguém entende?
Não sei se é exatamente uma excentricidade: imprimo tudo o que escrevo para sentir o texto ao alcance das revisões.

Se a literatura desaparecesse do mundo dos vivos, onde você se esconderia?
Não vejo a literatura como um refúgio. E se temos a consciência em alerta, penso que não há refúgio possível.

O que você tolera em outros escritores, mas não em si mesmo?
A capacidade de ser convidado para falar sobre literatura, falar a respeito de tudo, menos da literatura.

O que você tem de mais precioso e não pode dizer em volta alta para um fantasma?
Se dissesse o quê estaria me contradizendo.

*

Edimilson de Almeida Pereira nasceu 1963, em Juiz de Fora, Minas Gerais, sudeste do Brasil. É poeta, ficcionista, ensaísta e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Já ganhou diversos reconhecimentos literários nacionais, como o Prêmio São Paulo de Literatura e o Oceanos.


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