CONTRA ESPELHOS
Joca Reiners Terron mapeou apocalipses por três décadas e agora precisa lidar com outros começos — todos contrários ao realismo comezinho

Em uma sexta-feira chuvosa de 2024, o autor cuiabano Joca Reiners Terron, 57 anos, nos recebeu no quarto em que escreve, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. De chinelos e camisa de botões, com a barba cinza comprida que cultiva desde o início da vida adulta, o escritor contava que ainda não havia escrito uma linha naquele dia — o que poderia ser perigoso. “Preciso fazer ao menos uma anotação diária sobre o livro. Senão, fico frustrado”, disse, pouco mais tarde. “Saio dando patada no elevador, sabe? Nos vizinhos. Fico mal educado, esse tipo de coisa. Atrapalha bastante a minha vida.”
Assim que se sentou em um dos dois sofás do seu escritório, Joca se queixou de dores no corpo, algo que faria outras vezes ao longo da entrevista. “Ficar velho é uma merda”, disse. Havia escolhido o tempo como seu grande inimigo. “Durante uns cinco minutos do dia me condoo por meus livros não serem mais traduzidos, ou não serem mais lidos, ou por isso não me dar um puto”, contou. “E no restante do dia fico pensando, me condoendo, por não ter tempo suficiente hoje para escrever os livros que pretendo escrever. E que não são poucos.”
Apesar do humor pessimista, Joca se vê mais distante do tom apocalíptico que marcou sua prosa das últimas três décadas, sobretudo a trilogia recente: A morte e o meteoro (2019), O riso dos ratos (2021) e Onde pastam os minotauros (2023). Mas diz se manter ligado ao seu gesto inaugural — a busca por uma linguagem inventiva que reelabore a anterior. Quer escrever a favor das distorções, dos organismos e dos espaços mutantes que se opõem ao espelho confortável do realismo.
“Me parece que há uma limitação muito grande hoje em dia, em que as pessoas querem se reconhecer na leitura dos livros”, disse, rodeado pelas criaturas que habitavam as estantes, o teto e as mesas do cômodo: um boneco de chifres com uma caveira no ventre; um casal de bichos amarrados por uma corda na cintura; um gorila sobre uma calculadora. “Para muitos leitores, o livro parece ter agora um pouco de espelho. Você vai ler e quer se ver refletido naquilo que está lendo.”
Nas horas de conversa com MUTUM, Joca falou do presente e do futuro, mas também, como em poucas vezes, sobre o passado contido debaixo de suas criações literárias. Lembrou das buscas por Poe, Stevenson e Tintim na infância e de como se tornou, antes de escritor, um poeta. Também opinou sobre o mercado literário e como a ficção latino-americana pode ser pensada a partir do inumano.
O que publicamos abaixo é um excerto de uma sessão de perguntas que acabou em um boteco onde, ao fim da noite, uma pedinte abordou o escritor em busca de algum trocado. Joca lhe deu uma nota e perguntou de onde ela era. De dentro da terra, a mulher disse.
E é de lá que partimos.
A INFÂNCIA, O RIO E “NOITE DENTRO DA NOITE”
Queríamos começar com Noite dentro da noite (2017). No livro estão presentes as relações entre infância e imaginação, que você trata de maneira ficcional. Como você define essa etapa da sua vida?
A minha infância foi um negócio meio… Até os 16 anos, morei pouco tempo nas cidades em que vivíamos, coisa de dois anos em cada lugar. Isso se devia ao fato de meu pai ser funcionário do Banco do Brasil. Ele chegava na cidade, montava a agência, botava para funcionar e era transferido para outro lugar.
Acho que foi uma infância salva pelos livros, pela minha curiosidade com a leitura. Não dava muito tempo de estabelecer relações, fazer amizades, esse tipo de coisa. E por sorte também tinha uma avó em São Paulo. Minha família sempre foi dividida, um lado é do Mato Grosso e o outro lado é paulista. Daí eu vinha uma vez por ano para o interior de São Paulo, Marília, que é onde meus avós moravam, e aí torrava todo o dinheiro que juntava ao longo do ano com revistinhas e livros, essas coisas. Então era um pouco isso, mas também tinha a natureza. Não fui um nerd exclusivamente leitor… Tinha uma coisa muito forte da fantasia, de tentar reproduzir a fantasia na vida real. Então lia Robin Hood, e aí fazia um arco e ia para o mato caçar passarinho. Eram outros tempos também, o Ibama não existia. Ia pro mato com espingarda de pressão. Foi uma infância divertida nesse sentido.
É justo dizer que sua vida em trânsito e fronteiriça moldou sua escrita?
Não sei, acho que é um jogo entre realidade e fantasia. É quase sempre uma investigação. Quando você investiga, se torna um leitor, começa a ler, começa a perceber alguns universos com os quais se identifica, você começa meio que a refletir isso na realidade, ou procurar pistas daquilo que está na ficção no plano da realidade. Quase todo mundo que começa a ler na infância, ou pelo menos era assim, lia Stevenson, Edgar Allan Poe, Jules Verne, essas coisas. Ou seja, histórias de aventura. Emilio Salgari. E eu estava em um território propício para a aventura. Morei em cidades que em geral tinham um rio, e o rio é uma forma de aventura. Pegar uma boia de trator, encher e descer quilômetros no rio. Aprendi a nadar no rio antes de aprender a nadar na piscina, pular da árvore dentro da água, sei lá, ver bicho, essas coisas todas. Tenho a sensação de que o lugar fulcral para esse encontro entre realidade e leitura foi em Bela Vista, que é meio a Curva de Rio Sujo1 na sua essência. Foi a cidade em que morei quando tinha entre 9 e 11 anos, por aí. Primeiro porque é na fronteira com o Paraguai. Segundo, porque li por acaso A Retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, e de repente erguia o olhar e via na outra margem o forte que aparece desenhado no livro pelo Taunay. Foi então que comecei a investigar os territórios da região onde aconteceram as batalhas.
Isso tudo influenciou na compreensão que comecei a ter ainda na adolescência sobre a verdadeira história da Guerra do Paraguai. A compreensão do genocídio cometido. E no Paraguai você percebia isso claramente. Você passava pela guarita onde estavam os soldados e percebia que os meninos tinham 12 anos, o cara era soldado e tinha no máximo 13. Às vezes o garoto estava de bermuda, com coturno, e um jaleco que era cinco vezes maior que o tamanho dele. Com uma arma brasileira, resto das armas que o Brasil usou na campanha da Segunda Guerra Mundial, e que às vezes estourava na cara do soldado.
E a presença militar em Bela Vista é muito forte, porque lá tem um Regimento de Cavalaria Mecanizada. Então todo mundo é militar na cidade, e é uma cidade muito pequena. Mas a vida militar também tem outros aspectos. Primeiro, o quartel é uma coisa lindíssima, um prédio colonial, e na frente tem um campo de polo gigantesco. Então você ia assistir ao jogo de polo. Era uma maluquice.
Mas sempre me lembro do Paraguai como essa coisa muito misteriosa, mesmo soturna. Onde você entrava em um buraco qualquer e dava de cara com um sujeito que vendia animais clandestinamente. E os animais estavam todos doentes e enjaulados, era uma coisa terrível. Lembro perfeitamente da vez que vi uma harpia em um lugar desses. A harpia é uma águia amazônica brasileira, uma das maiores, só perde para o urubu-rei, acho, e é uma ave muito impressionante. Uma harpia dentro de uma gaiola, guardada no fundo de uma casa. Foi uma imagem muito forte.
Você devia ler quadrinhos também, já que os menciona nos livros.
Sim, é verdade.
Quais quadrinhos lia mais?
Bem, meu pai era um leitor de gibis, de quadrinhos. Era a coisa que ele mais lia e lê até hoje. O eterno leitor do Tex. Já leu todas as edições. Eu falo “como é que você consegue ler sempre?”. Porque são sempre os mesmos gibis que saem por editoras diferentes. Mas tinha a Vecchi, que era a editora que nos anos 70 e 80 publicava. Era uma editora que foi destruída por um incêndio no final dos anos 80. E a Vecchi publicava muito quadrinho italiano e muito quadrinho brasileiro de terror também.
Eu lia tudo de gibi. Tinha a Editora Abril, que era uma usina de informação. Às vezes tenho a sensação de que sou um dos últimos daquela geração de malucos de banca de jornal, sabe? Que sabe um pouco de tudo, mas sabe através de fascículos. Porque tinha fascículo de tudo, né? Nosso século. Meu pai era um maluco de fascículo. É um maluco de fascículo. E em casa tinha todos os fascículos possíveis e imagináveis. Vira e mexe nas viagens encontro um sujeito desse, que é aquele cara que tem curiosidade sobre tudo e que cultivou todo o seu conhecimento por meio do jornalismo, desse tipo de publicação. Então foi assim. Agora, os gibis… bem, tinha a Vecchi, mas antes disso e durante tinha a Abril, a Ebal e a RGE, a Bloch e a Rio Gráfico Editora, que é a atual Editora Globo.
Você entrava numa banca de jornal e era um manancial de informação. Editoras pequenas que distribuíam nacionalmente, como a Grafipar, que possuía um catálogo só com autores brasileiros. Paulo Leminski escrevia, Alice Ruiz escrevia história em quadrinhos. Eu fui para a Itália em 2019 e entrava nas bancas de jornal e parecia que eu estava voltando para minha infância. Porque aqui tudo morreu, né? Mas na Itália continua igual. Na Argentina ainda tem um pouquinho. Mas na Itália é uma loucura. Uma loucura. Primeiro que já tem a familiaridade de você entrar e encontrar gibis da Bonelli, que é a editora do Tex, Ken Parker, Zagor, essas coisas todas. E, bem, nesse período as bancas eram riquíssimas. Vivia o tempo todo no mato, mas a banca era o equivalente, talvez o sinônimo, de civilização possível para mim. Quando você entrava lá, as luzes, as cores, o cheiro, era uma experiência sensorial incrível.
Essas experiências com quadrinhos resultaram no gosto pela literatura?
Sim, com certeza. Meu avô materno tem um apartamento em Santos. O apartamento do meu avô fica na José Menino. Do lado havia uma galeria que tinha uma banca de gibi importado. Lá eu comprava o Tintin, francês, edição portuguesa, que vinha em álbuns enormes, com seis meses de histórias encadernadas. Tenho uma teoria de que minha ficção é toda fragmentada, ou sem pé nem cabeça, justamente por causa desses Tintin. Porque você achava um, dois exemplares, e em geral não tinha continuidade. Então você começava a ler e a história já estava iniciada. E você terminava de ler aqueles seis meses e as histórias não eram concluídas. Você era obrigado a inventar o início e o fim.
Como surgiu a escolha de narrar Noite Dentro da Noite em segunda pessoa, transformando o “eu” em “você”?
Não faço a menor ideia. Trabalhando, né? Escrevendo e reescrevendo esse texto. Grande parte do livro existia quatro anos antes da publicação, em 2017. E acho que era um livro narrado na terceira pessoa. E, no entanto, em algum momento dele, eu descubro que… Enfim, eu descobri isso, sabe? Descobri que era a segunda pessoa. Daí fui obrigado a voltar atrás, reescrever tudo, reorganizar o discurso e tentar entender o motivo que fazia o texto ter que ser daquela maneira. E aí que foi caindo a ficha, foi fazendo o clique. Fui entendendo o sentido e como o método construtivo dialogava com essa figura subjetiva que, na realidade, não existe em termos subjetivos. Ela é narrada por outros. Agora, também tem um grau grande de inconsciência. Até hoje tenho dúvidas. Não sei bem quem narra o livro. Quem é o supranarrador, o narrador último do livro. Ou a narradora, não sei. Nem sei se há isso. Uma origem para essa narração concêntrica que vai, vai, vai, vai, vai. Ele disse que não sei quem falou que alguém contou etc, não sei onde começa isso.
Uma história contada dentro da história, contada dentro da história.
Pois é. A tal dobra do barroco. E era isso que tinha que ser, e foi uma descoberta que me custou muito. Acho que reescrevi esse livro seis vezes.
Foi seu livro mais trabalhoso?
Ah, sim, também por conta de sua extensão. Nunca mais pretendo — quer dizer, pretendo sim, mas acho que nunca mais vou ter as condições que tinha para escrever esse romance. Hoje não estou conseguindo escrever nada porque tenho 51 alunos e estou traduzindo dois livros ao mesmo tempo. Então do final do ano até agora escrevi, sei lá, uns 100 mil toques que correspondem a um primeiro capítulo de um livro que não sei se vou conseguir escrever.
As condições para escrever Noite dentro da noite eram outras. Eu trabalhava na RT Features, era um scout, rights scout. Tinha que ler coisas e falar, ó, isso aqui eu acho bom. Trabalhava em casa, recebia um salário que era suficiente para pagar o grosso das contas, e conseguia ter tempo, sabe? Assim, quatro, cinco horas diárias para me dedicar ao livro. Então essas condições, para elas se repetirem hoje em dia, é muito difícil. Não consigo ver isso acontecendo novamente.
Deve ser difícil saber quando parar um livro dessa extensão.
É, cortei uns 100 mil toques do livro. Tinha toda uma narrativa em rodapé que foi cortada. E era uma narrativa histórica. Uma expedição do Cabeza de Vaca, mas é um negócio que pretendo retomar em algum momento. Durante um tempão fiquei em dúvida sobre o que tinha feito. Hoje, já não me preocupo mais, foda-se. Mas será que deveria ter ouvido o meu editor? Ou devia ter feito como o Malcolm Lowry, escrever uma carta de 65 páginas explicando porque que eu não podia cortar uma vírgula?
Ou como o Alberto Laiseca, que ficou abraçado com Los Sorias.
Pois é, mas agora já era. No entanto, tenho a sensação que o livro ia passar de uma… Tenho a sensação que é o meu livro menos lido, sabe? E, por outro lado, se ele ultrapassa essa fronteira, acho que ele ia ser um livro completamente desconhecido.
Tem uma coisa que me chateia muito que é quando falam que o livro é confuso. Para mim é uma obra construtivista, entendeu? Planejada e pensada nos mínimos detalhes. Como autor nunca quero ser descortês a ponto de falar que confuso talvez seja o leitor, ou que lhe falte algo fundamental para conseguir entender o livro ou mesmo mergulhar no livro. Mas é um negócio que me incomoda. E pior que é muito comum, em geral, ouvir isso dos meus livros. Porque sempre procuro que o livro, a despeito de ser longo, como o Noite, tenha um caráter de precisão.
Você lembra do acidente2 que surge como motor do Noite dentro da noite, quando bate a cabeça e apaga por um bom tempo?
Não, tenho uma lembrança vaga. Não lembro quase nada. O que lembro foi de um médico quase bater no meu pai. Quando a gente muda de cidade, e olha só, eu fazia eletroencefalograma em Bauru, porque Bauru é um importante centro médico de neurologia. Quando vinha de férias, ia com o meu pai para Bauru para fazer eletroencefalograma durante esses anos todos, tinha que fazer de seis em seis meses. E é curioso ter ido estudar lá depois. A gente mudou de médico por conta da distância, de alguma transferência do meu pai, e por isso fomos visitar um outro neurologista em Campo Grande. Esse cara levantou, pegou meu pai pelo colarinho e falou assim, “como é que você dá gardenal por quatro anos para uma criança”? Me lembro perfeitamente da cena.
POESIA, DESASTRES E “NÃO HÁ NADA LÁ”
A poesia foi sua porta de entrada para a escrita?
No período da adolescência até os vinte e tantos eu só pensava em poesia. Foi por meio dela que aprendi a ler criticamente, inclusive os textos em prosa. Como autodidata, minha formação crítica em literatura nasceu da poesia, não da prosa. Só mais tarde comecei a me debruçar sobre ensaios e críticas voltados à ficção, mas aquele tempo foi especialmente fértil. Afinal, eu — assim como toda a minha geração — devo muito aos concretos, que popularizaram a ideia de crítica no Brasil. Os livros de ensaios do Augusto de Campos, por exemplo, e também os do Haroldo, mas sobretudo os do Augusto, tiveram um papel fundamental nisso. A crítica em forma de verso, reunida no Anticrítico, foi para mim uma porta de entrada decisiva, um aprendizado de enorme potência. E não só isso: tudo o que eles traduziram também abriu horizontes.
Ali a poesia concreta já estava morta, ao menos seu período heróico. Já era um quadro na parede, digamos assim, uma escola de vanguarda histórica. Mas eles continuaram fazendo um trabalho pedagógico em relação à poesia ao longo de décadas e meu gosto pela poesia se deve muito a esse trabalho que eles realizaram.
Seus primeiros livros parecem uma mistura do concreto com a tal poesia maldita. Augusto de Campos e Piva, reunidos.
Era mais ou menos o que eu tentava fazer.
Como foi e como é seu processo de escrever poemas?
A poesia para mim entrava mais pelo ouvido, sabe? Tem um aspecto musical, tem um aspecto de construção do texto mesmo, do verso, de ressonância, jogos de métrica e tudo mais. E me afastei disso. Quer dizer, tem um projeto em que estou tentando reintroduzir essa preocupação, que é um negócio que se chama Cacique Silêncio, que são os poemas com esse personagem, mas poemas mais magros e musicais, menos narrativos. Mas mudou muito, então o poema para mim virou muito uma observação, um apontamento do cotidiano, como em O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas. Ficou mais objetivista, acho.
É marcante um poema desse livro em que o eu lírico tenta falar de algo complexo e doloroso enquanto frita bifes.
É, isso. Ainda tem uma ressonância sonora em alguns deles, que em geral são os mais antigos, e isso mudou muito nesse sentido. Mas isso da inconsciência tem a ver com o episódico, com escrever salteadamente, sabe? Tem o leitor salteado do Macedonio Fernández, e tem o escritor salteado também, que é aquele que escreve quando pode, porque tinha emprego, tinha trabalho, tinha filha pequena, tinha casamento aos frangalhos, essas coisas com as quais eu me ocupava muito.
Mas depois disso, acho que a minha ficção e os romances têm a ver com um período de estabilidade maior na vida. E também da consciência sobre o que queria fazer com relação à ficção. Ainda assim permanecem momentos de grande inconsciência. Muita produção. Centenas de contos esparsos, coisas que não pretendo publicar ou reunir em livro, mas que serviram de aprendizado de escrita. Aprendizado que acontece também através de resenhas, essas coisas de colaboração com imprensa, ou de textos para livro, de aparato, tradução propriamente dita. Mas daí os romances começaram a me chamar mais, acho. Porque um romance é muito mais poderoso nesse sentido. Cabe tudo. Minha preocupação poética, minha vontade de explorar o fragmento, mas também a continuidade, os jogos temporais… tudo.
Existem diversas imagens que surgem nos primeiros livros de poesia e depois reaparecem nos de prosa: labirinto, torvelinho, espirais, dentre outras. Queria que você comentasse se a sua poesia pode ser pensada também como um laboratório para a prosa.
Talvez essas imagens sejam mais fruto de obsessões inconscientes. Não tenho isso claro para mim. Primeiro, não leio esses poemas há muito tempo. Mas tenho alguma noção de que certas coisas se repetem, algumas sugestões, algumas imagens estão lá. Mas, por outro lado, como eu digo, nada foi programático nesse sentido, então certamente tudo é fruto do acaso. O que não é fruto do acaso é a poesia como uma espécie de oficina pessoal, de aprendizado de escrita mesmo. E não falo apenas dos poemas que escrevi, mas também dos poemas que traduzi.
O seu penúltimo livro, Quando sonhamos que sonhamos (2024), é inteiramente formado por fragmentos oníricos. Sua vida onírica está interligada com sua escrita?
Bem, quando estou escrevendo ficção, quando estou escrevendo particularmente os romances, acredito que a atividade onírica se mistura à vigília. Mas isso não ocorre logo no início. Noite dentro da noite foi um negócio complexo pra mim porque levei dez anos para escrever o livro. Nos últimos quatro anos que antecederam sua publicação, fiquei muito envolvido com ele. A ponto de me despreocupar com as obrigações práticas da vida. Botar o pão na mesa, essas coisas. Então naquele período me tornei um colaborador problemático para diversos trabalhos. Isso aconteceu porque a narrativa estava ocupando tudo. Ocupava o plano onírico, mas também ocupava a vigília. Eu só pensava no livro o tempo todo. Tudo que eu fazia em paralelo ao livro, como conviver com as pessoas amadas, esse tipo de coisa, era uma situação muito custosa para mim. Porque me afastava de terminar o texto.
Me parece que o elemento de prazer da escrita está muito vinculado a esse estágio que você consegue atingir, em que a produção onírica, a vida onírica, se mistura, se mescla a essa realidade cotidiana. Agora, chegar a esse estágio é um processo difícil, algo raro para mim. Comigo acontece quando estou na metade do livro e me entreguei a ele. Portanto, aconteceu com todos os romances que escrevi mais conscientemente, porque alguns eu escrevi muito inconscientemente. Hotel Hell, por exemplo, que não é um romance propriamente dito, mas enfim. Ou Não Há Nada Lá, que parte de um roteiro de história em quadrinhos que comecei a desenhar na adolescência, que narrava um encontro entre Rimbaud e Billy The Kid. E é isso que dá a partida ao livro, sabe? Então foram muitos anos pensando naquilo, mas pensando assim, de uma maneira descomprometida, porque eu não tinha tempo para escrever. E era de uma maneira muito assemelhada ao jeito que eu produzia a poesia. Uma época em que sentava para tomar uma cerveja, sentava para ler e saiam cinco poemas. Hoje fico no celular, olhando o Instagram, mas nesse período era assim. Ficava olhando para a copa de uma sibipiruna e vinha um poema. Conversava com um bêbado qualquer no pé sujo e vinha alguma coisa. Acho que o processo de estímulo era parecido com a escrita de ficção.
Não dá para imaginar seus romances saindo tão repentinamente.
É, depois entendi que para escrever um romance eu precisaria me comprometer num outro nível. Acho que a primeira experiência que tive de mergulho assim profundo foi com Do fundo do poço se vê a lua. Ali compreendi que precisaria mudar a minha vida para conseguir me envolver com os livros que queria escrever. Então esse foi um momento chave de compreensão do processo de escrita, de como funciona para mim.
Nesse período também entendi que já não funcionava mais escrever de noite, cansado, depois de trabalhar o dia todo. Isso já não me interessava mais, ficar escrevendo até três horas da manhã, depois virar um zumbi. Porque eu precisava criar um espaço. Comecei a entender também que eu precisava acordar de manhã e entrar no lugar onde escrevo, e fazer um café, e não conversar com ninguém, pensar em outras coisas. Que isso era fundamental para a continuidade dessa atividade onírica.
Não sei se você concordaria, mas seus últimos romances parecem ser mais narrativos e sedutores para o leitor. Diferentemente, por exemplo, de experimentos como Não Há Nada Lá.
É, tinha uma HQ que eu queria fazer, que era só isso, era só o encontro dos dois: Rimbaud e Billy The Kid. Porque tive a minha fase de fissura em Rimbaud, claro, que perdura até hoje mas de uma forma menos intensa. Mas sempre pensei nisso. Porque o Rimbaud pegou um daqueles navios e tentou ir para a América. Os caras pegaram ele pelos fundilhos e jogaram dentro d’água, né, ele teve que voltar nadando. Eu pensei, porra, e se ele tivesse ido para os Estados Unidos? O Rimbaud ia virar o quê? Ia virar um caubói, um pistoleiro, alguma coisa assim. Virou o Não Há Nada Lá.
Também é curioso como o Não Há Nada Lá é um livro que fala do fim do mundo, do fim do livro. Um texto que vai sendo esgarçado, as letras se espatifando pela página. Tem momentos de pouca legibilidade, aquela coisa de alguns leitores acharem que o livro tinha vindo com defeito.
Ah, é. O texto deformado, né?
Mas também como esse olhar apocalíptico, digamos assim, meio que vai contaminando toda a sua obra. Não sei se você concordaria com isso, se você é consciente desse processo.
Pois é, mas você acha que isso está nos poemas, por exemplo?
Acho que sim. No Animal Anônimo, sim.
No Animal, né? Sim, tem umas coisas. Porque o Animal foi escrito junto com Não Há Nada Lá. O Animal Anônimo é de 2002, e o Não Há Nada Lá foi publicado em 2001, então eles são contemporâneos entre si. E no Animal Anônimo tem muito São Paulo, a presença da cidade e tal. E São Paulo é um negócio apocalíptico, mas é um apocalipse assim: vem o apocalipse, destrói tudo e daí constrói de novo. São Paulo é meio isso. E é um período em que eu trabalhava ali na Conselheiro Nébias. Trabalhei quase dez anos ali numa editora de livros didáticos, sete anos pelo menos. Então a experiência do centro era importante para essa compreensão da cidade. Acho que o Minhocão é muito símbolo desse poema, do livro em si. Agora, é a virada do milênio, aquele período ali foi muito assustador em termos de… Essa paranóia que a gente vive, que hoje é constante, ela começa a se intensificar na virada do milênio, começa pesada. E um dos fatores que movem o Não Há Nada Lá era uma visão apocalíptica que existia a respeito da própria literatura, da existência dos livros mesmo, que era um negócio que me apavorava. Falavam que o livro de papel ia acabar em dois ou três anos, era esse o discurso. Depois se viu que o livro eletrônico não pegou, é uma coisa que claudica até hoje.
No entanto, se você pensar que nesse período o PDF como formato estava sendo inventado, e os primeiros formatos de livros eletrônicos e a internet começaram a se firmar… A internet se torna uma coisa que a gente tem em casa, ainda que discada, mas quem tem interesse e condições já tem internet. Sei lá, são os primeiros livros que eu compro na Amazon americana naquele período de 97, 98. Então o livro é muito fruto desse fim de milênio, de virada. Acho que o Apocalipse surge mais fortemente aí, mas certamente ele tem um antecessor nas minhas leituras do próprio Apocalipse, do livro bíblico de João, da minha fase bíblica. Porque quando eu tinha uns 12 anos, li a Bíblia inteirinha e fiquei fascinado com aquele negócio. Era o período em que eu estava tomando gardenal, então comecei a ter uns delírios, comecei a achar que eu era o messias, foram uns delírios pesados, sabe?
Delírios messiânicos na infância?
Delírios com barbitúricos na infância. Não sei, eu lia enlouquecidamente.
Mas você chegava a ter alucinação?
Ah, tive algumas alucinações. Tinha uma alucinação que era frequente. Olhava para estátuas em igrejas e as estátuas abriam os olhos. Eu nunca… Minha família não é religiosa, exceto minha avó materna. E minha avó materna era uma mulher das Filhas de Maria, sabe? Na paróquia era aquela que lavava os mortos, vestia os mortos. Tem um conto no Curva de Rio Sujo que é isso. Eu vou com ela para lavar um defunto e quando chegamos lá tinha uma árvore de Natal com os brinquedos do neto. O cara morreu em uma véspera de Natal. Então teve essa fase. Essa fase foi curta, mas muito delirante.
Tive umas visões… A visão que tenho mais clara aconteceu ao entrar numa construção abandonada. Por isso tenho um pouco de obsessão com construção abandonada. Mas era uma casa abandonada e tinha sido quase que inteiramente coberta por erva daninha, unha de gato, essas trepadeiras. E eu olho para cima e na parede tem um elmo e uma vestimenta de conquistador espanhol preso no negócio. E aí eu saio correndo e volto no dia seguinte e não tem nada lá. Isso foi no auge do gardenal que eu tomei durante quatro anos por causa do acidente. Então tinha umas coisas meio malucas.
A TRILOGIA DA VINGANÇA E OS ORGANISMOS
Você está em um período muito prolífico da carreira: três romances em quatro anos. Ao que atribui tanta produtividade?
Atribuo ao trabalho na RT Features. O salário que eu tinha e que não tenho mais desde novembro de 2021. Minha preocupação é maior em relação àquilo que eu gostaria de escrever. Então durante uns cinco minutos do dia eu me condoo por meus livros não serem mais traduzidos, ou não serem mais lidos, ou por isso não me dar um puto. E no restante do dia fico pensando, me condoendo, por não ter tempo hoje para escrever os livros que pretendo escrever. E que não são poucos. Por outro lado, também tem uma grande dose de procrastinação em relação a alguns livros que planejo escrever há muito tempo. Um deles se chama A solidão segundo o astronauta, estou escrevendo esse faz um tempão e não consigo terminar. E às vezes surgem coisas como A morte e o meteoro, que aparece no meio do caminho, que escrevi rapidinho. Não sei, entendi que esses livros coincidem em dois aspectos. Primeiro, a felicidade cotidiana. Facilidade e felicidade da vida real. E segundo, certamente, uma emergência em relação a alguns temas. “Tema” não, não gosto da palavra “tema”, mas alguns livros que simplesmente furaram fila e que exigiram ser escritos. Livros que foram escritos a partir da necessidade. Então incluo aí O Riso dos Ratos (2021) e A Morte e o Meteoro (2019), que são livros que furaram fila.
Você não tinha pensado neles anteriormente?
Não tinha. Não era uma coisa que eu vinha planejando. Eles exigiram ser escritos. São frutos da necessidade. E é por isso que acredito que tem tanta raiva neles.
Onde pastam os minotauros, seu romance mais recente, tem algum grau de parentesco curioso com o Cormac McCarthy, não acha?
É que tem vaca, tem deserto…
Não por isso. Mas pelo narrador não-humano, que tem um tom meio mítico, bíblico até, e fez sentido com o que você falou de na infância ter lido a Bíblia inteira. Porque o narrador parece uma voz que está acima do tempo.
Um jeitão, né. Acho que foi uma influência consciente, aplicada. Tem um livro dele que se chama Outer Dark (1968), que também tem um jogo de intertextualidade. São duas histórias, é um casal que tem um filho ou uma filha fruto do incesto e que estão em fuga. O livro começa com eles fugindo, e aí todos os capítulos são intercalados com os perseguidores, mas você não sabe muito bem quem e como eles são, se são humanos, se são de uma ordem demoníaca, coisas assim. Esse livro foi importante para mim em termos de estrutura.
Pode nos falar um pouco sobre o processo de escrita de A Morte e o Meteoro?
A Morte e o Meteoro escrevi em um mês. Assim, dois meses, dois meses estourando de escrita. É que nasce de um conto que a Granta pediu, e aí eu escrevi e continuei a escrever, mandei o conto, que é o primeiro capítulo, e continuei, mas eu não tinha planejado nada disso, então ele saiu muito rápido, e também aí surgiu o momento certo, sabe? Estou numa praia isolada lá no Ceará e tal. Deu certo. Mas parece que a realidade começou a interferir demais, assim, ou exigir, né? O bolsonarismo, a questão política brasileira. E, por outro lado, acredito que esses livros também ganharam. Eles têm uma densidade, talvez, de refletir esse tempo, ainda que A Morte e o Meteoro seja visto como uma ficção científica ou coisa do gênero, muito por conta dessa premência, dessa necessidade, dessa influência da história comum, da história pública.
E é outro livro com uma complexidade temporal muito grande, com as pontas que se encontram, dos kaajapukugi, meio que refletidos também na expedição chinesa a Marte.
Tem um conto meu que chama “A Maçã”, que foi publicado na Revista da FAPESP e na Revista da Universidade do México. Tenho a sensação que esse conto tem uma estrutura bem cristalina, sabe? Porque joga com a passagem do tempo. E eu sempre quis espelhar aquela estrutura numa coisa um pouquinho maior, e A Morte e o Meteoro me permitiu isso. Então, depois que escrevi, depois que senti necessidade de entender melhor quem era o Boaventura, percebi que aquilo ali era a experiência ideal, era o livro ideal, o texto ideal, a escrita ideal para eu desenvolver essa forma, experimentar com essa forma espacial, digamos assim, desse conto.
Quando escrevi esse conto tinha me separado e estava morando num motel lá na Bela Vista. Horroroso, motel mesmo. Estava duro, ferrado. E a Revista da FAPESP, através da milagrosa Ana Lima, que era a editora na época, me pediu um conto e eu não tinha onde escrever. Daí entrei numa lan house, escrevi o conto, mandei, e aí ele saiu daquele jeito mesmo. Nunca mexi nele depois.
Um conto de amor, né?
É, um conto de amor.
Amor e viagem no tempo.
É.
Em uma apresentação feita na PUC-Rio em 2023, você falou de uma patologia continental que atravessa a literatura latino-americana, que seria a chaga do processo colonial e os desdobramentos dele. Você falou inclusive de uma “ficção antropológica”. A Morte e o Meteoro também se encaixaria um pouco nisso?
Bem, é inegável que tem muita antropologia ali no livro, ou pelo menos antropologia de botequim. No entanto, recentemente tenho chegado à conclusão de que tanto A Morte e o Meteoro quanto Noite Dentro da Noite são experiências do que tenho buscado pensar como “ficção orientada pelo organismo”. Onde a presença da natureza, de elementos da natureza que comumente não têm importância central nos livros, ou na narrativa do século XX em geral, vamos colocar assim, começa a surgir na ficção. Ou pelo menos na minha ficção, é claro. Aí estou falando do pyhareryepypepyhare, do Noite Dentro da Noite, e o tinsáanhán, de A Morte e o Meteoro. Tenho tentado desenvolver essa ideia.
Comecei a mexer no texto da minha fala na PUC-Rio e entendi que aquilo ali é evidentemente um esboço, e que o caminho que ele vai tomar é uma reflexão sobre uma ficção orientada pelo organismo que surge no século XXI e que nunca havia existido na história da literatura, e que começa a aparecer em diversos livros da ficção latino-americana.
O que seria uma ficção orientada pelo organismo?
Onde talvez a presença daquilo que anima a produção da ficção, a origem daquela voz, já não é mais o humano. Uma ficção que explora um sujeito que já não é mais humano, e onde essa humanidade talvez só seja possível em um outro organismo. E não, não estou falando de um organismo artificial, mas um organismo natural, uma bactéria, um micro-organismo, uma planta, sei lá, uma coisa assim, sabe? Um cipó que nasce dentro da gente ou então as vísceras de um besouro que você fuma e atinge o plano metafísico. Me parece que é um caminho que surge na minha ficção nesses dois livros e que evidentemente só estou percebendo agora, com maior distanciamento crítico.
Além dos organismos, os lugares também parecem ter um papel fundamental nos seus livros. A cidade fictícia Curva de Rio Sujo é um exemplo. Qual é a importância, na sua obra, de hiperdimensionar esses espaços?
Tem a ver um pouco com o espírito de inadequação que diversos livros ou personagens têm. E nesse sentido, é como se os livros trabalhassem uma noção de território meio mutante, que se transforma, mas se transforma sendo, de alguma maneira, o mesmo. É como se um mesmo território tivesse múltiplas dimensões. Talvez a tradução que eu consiga vislumbrar de maneira um pouco mais clara seja essa noção de Curva de Rio Sujo que acompanha os livros. E que é uma coisa que fui inventando e foi me aparecendo na medida em que escrevia os livros. Mas fui entendendo que a ideia de território, para mim, só faz sentido se estabelecer algum tipo de contato com o que o território foi e é na minha história pessoal. Ou seja, um lugar que é cambiante, que ia mudando, onde eu nunca consegui, de alguma maneira, criar raízes. Sem dúvida São Paulo talvez seja isso, mas ainda assim é difícil se falar em raízes em São Paulo, nessa cidade que é atravessada por centenas de rios e as raízes não pegam muito. Mas tenho a sensação de que o território tinha que ser mutante e tinha que mudar de lugar para fazer sentido para mim. E então Curva de Rio Sujo começa a surgir como esse lugar, que é um lugar que às vezes adquire a forma de cidades em que eu vivi mesmo. É no livro Curva de Rio Sujo que essa noção aparece primeiro. E onde o mais próximo de um lugar é isso: apenas uma cidade que é atravessada por um rio. Mas as histórias lá se passam em diversas cidades. Acho que as cidades não são mencionadas, talvez Bela Vista seja. E progressivamente começo a perceber que esse território pode adquirir lugares e formas, incorporações distintas. Isso vai mudando com a passagem dos livros e dos personagens.
Então essa ideia de que, sei lá, em O Riso dos Ratos é essa estação de metrô abandonada, em A Morte e o Meteoro é aquele bar flutuante no rio Purus, no Noite Dentro da Noite é o lugar propriamente, mas também é o lugar mais parecido com o do livro Curva de Rio Sujo, ou seja, são cidades construídas no pântano. E no Reencenação, o livro que ainda estou escrevendo, ele aparece, ele é um lugar dentro de um videogame, na verdade. Mas o personagem que está dentro dele acha que é um programa, um reality show. E é numa curva de rio sujo onde está parado um barco de rodas de pás, aqueles barcos que atravessavam o Mississippi e o Amazonas. Mas ao longo desse capítulo inicial do livro, o lugar onde o personagem está morando, ele vive com Domenique. É uma história muito complicada que eu nem consigo explicar direito, mas esse lugar vai se transformando. E de repente esse barco passa a ser um submarino, que é o submarino do Noite Dentro da Noite, e de repente a própria paisagem onde ele está se transforma. Então existe um ralo no rio, nessa curva de rio, que suga tudo o que está nesse cenário e esse lugar se torna um deserto e aí o submarino é substituído pela estação espacial Soyuz, uma réplica dela, mas que está ali naquele lugar. E isso tem a ver com A Solidão Segundo o Astronauta, que é o livro que também ainda estou escrevendo.
LITERATURA LATINO-AMERICANA E OTRA LÍNGUA
Você possui uma extensa pesquisa sobre escritoras e escritores latino-americanos ainda desconhecidos no Brasil. Coordenou o selo Otra Lingua, da editora Rocco. Queria que você contasse como começou o seu contato com a literatura hispânica produzida nas Américas.
Como muita gente, acho que comecei lendo Cortázar, aquela coisa. Mas acredito que na verdade tem muito a ver com a internet, porque não havia um intercâmbio assim tão forte na época. A gente não sabia o que as novas gerações estavam produzindo. Tem um hiato gigantesco entre os autores do “Boom” e o que começou a ser publicado no final dos anos 90 e dali em diante. Então teve o Ricardo Piglia, que descobri muito por acaso, naquela época maravilhosa em que a gente descobria coisas por acaso quando entrava numa livraria. Entrei na livraria Klaxon, uma livraria ótima que ficava na Pamplona, e que estava falindo, que é sempre esse momento ao mesmo tempo horrível e feliz da vida de um leitor, que é quando você encontra uma livraria que está falindo, está vendendo todo o seu acervo. E lá eu comprei Respiração Artificial. Bem, aí me apaixonei. Foi um livro que surgiu quase na mesma época do Ninguém Nada Nunca, do Juan José Saer. E aí fiquei atento. Falei, olha, que curioso, existem outros escritores que não aqueles do “Boom”.
Tinha lido o Borges também, claro, uma coisa ou outra, eu sempre lia o Borges assim como… Eu tinha medo de ficar subjugado demais, sabe, pela… É difícil fugir da forma dele, dos símbolos, das imagens e tal, mas, enfim. E aí, no começo dos anos 2000, começam a aparecer alguns sites que foram importantes. “Los Amigos del Ajeno”, “poesia.com”, que eram todos sites de poesia, de poetas argentinos. Luís Chaves era do “Los Amigos Del Ajeno” e o Martín Gambarotta, agora… Bem, tinha outro, “Los Noveles”, que tinha Mario Bellatin, por exemplo, foi onde descobri César Aira, Bellatin. Tinha entrevistas, pequenos dossiês, coisas assim, com fragmentos dos primeiros livros. Foi toda uma descoberta. E aí, o que aconteceu? Aí aconteceu que as passagens de avião ficaram baratas. As passagens de avião ficaram baratas e comecei a ir para a Argentina com frequência, então às vezes ia passar o final de semana em Buenos Aires.
Em que ano isso?
Isso aí foi no começo dos anos 2000. Você pagava 600 reais para ir e voltar. Eu ia passar final de semana, pegava assim quatro dias e aí começou uma troca pessoal mesmo, comecei a conhecer gente, aí veio o pessoal da Eloísa Cartonera, fiquei muito amigo do Cristian De Nápoli, do Cucurto, do Fabián Casas, do Santiago Llach, que tinha uma editora que era pequena, a Siesta. Enfim, daí começou a troca de fichas mesmo, assim, por e-mail e nessas viagens. E comecei a comprar livros e descobrir as coisas, investigar mesmo. Essa porrada de coisa que tem aqui, aqui e lá (apontando as estantes), assim, eu acho que é só ficção latino-americana.
E assim foi formando também a seleta para a coleção Otra Língua?
É, isso coincide mais ou menos com o período, a ideia, a vontade de começar a publicar latino-americanos, que já na época da Ciência do Acidente eu tinha. No entanto, não tinha grana. E tentei vender a ideia da Otra Língua para diversas editoras, e isso aí ficou passeando por um bom tempo, até achar alguém na Rocco, que foi a Marianna Teixeira Soares, que comprou a ideia. Depois ela saiu da Rocco e seguimos lá junto com a grande editora Vivian Wyler. E também com a Ana Duarte, que era a viúva do Torquato Neto, e que foi uma grande incentivadora, era diretora de arte da Rocco, e deu muita força para a coleção.
Bem, sim, aí era a desculpa ideal também, eu ia editar uma coleção e podia comprar livros à vontade.
E com uma seleção de escritores inusuais.
É. Era o meu gosto. Lá não tinha muita discussão. Eu falava “é esse” e acabou. Agora eu tô editando uma coleção na Martins Fontes3 que é de ensaios sobre escrita e ainda não saiu nenhum livro. E é uma puta discussão e eu tenho que convencer todo mundo o tempo todo. Só que daí todo mundo morreu, infelizmente, Ana Duarte morreu, Vivian Wyler morreu, e aí fudeu, né, a Rocco mudou. Senão eu teria feito os 21 iniciais que era o que estava programado para fazer.
Inclusive alguns estavam contratados. Como o do Mario Levrero, por exemplo. O romance luminoso, publicado depois por outra editora, era para ter saído na Otra Língua. Assim como títulos de outras escritoras, Selva Almada, Giovanna Rivero, Silvina Ocampo. Então esse contato começou pela internet, depois foi via pessoal, e aí eu comecei a me enfronhar e a ler, e eu percebi que a Argentina merece que a Unesco a considere um patrimônio universal da humanidade, da literatura de vanguarda e da literatura experimental, e percebi que era muito mais divertida e vive um momento infinitamente melhor do que a literatura de língua inglesa, por exemplo, que é aquela que acaba influenciando mais a gente, inevitavelmente, na condição de colonizados, por editores colonizados, ou seja, que publicam o primeiro livro do cara egresso da Columbia. A Rocco também era especialista nisso, em publicar os primeiros livros de qualquer bosta que saísse da Columbia.
Mas são aqueles livros quadradinhos, né, prosa de gringo, uma tradição fortíssima onde a possibilidade atual de invenção e de risco é mínima. E eu acredito que a poesia foi importante demais para incutir essa ideia de que a literatura que me interessa é a literatura que se arrisca em algum nível. Por mais que tenha publicado por editoras grandes, meus livros não se encaixam muito bem em qualquer lugar e sofrem da mesma síndrome de inadequação que os personagens e, provavelmente, seu autor. Então é um pouco isso, comecei a descobrir que na Argentina se faz de tudo, e existem livros que têm 50 leitores, e muitas vezes são espetaculares, propõem algo completamente novo, e é uma literatura universal, a literatura argentina, diferente de quando você pega a literatura mexicana. Você não consegue… Tem autores maravilhosos, mas são mexicanos, sabe? Existe uma noção de nacionalidade que dificilmente é transposta para outros lugares. Assim, interessaria a um leitor de Cuiabá, por exemplo? Na literatura argentina, muito talvez por conta do papel predominante que a ficção popular teve, evidentemente através da figura do Borges, mas do Rodolfo Walsh também, que editou e escreveu contos policiais, editou revistas, e Bioy Casares, e depois Piglia e mesmo o Aira, que está na vanguarda, mas não se recusa a fazer seu western gauchesco, trabalhar com noções da literatura fantástica e tal. Talvez esse princípio, essa influência, ou essa ideia do papel da ficção popular como um elemento que dá vazão nos meus livros, talvez venha muito da influência da literatura argentina, de alguns autores. E talvez por isso mesmo que eu não seja publicado na Argentina, porque provavelmente eles devem ver e falar ah, isso já temos bastante por aqui.
Você é um fã meio obcecado pelo Bolaño, né?
Acho que eu fui, né?
Na sua biblioteca tem tudo dele.
Vocês precisam entender que sou velho. E daí chega um determinado estágio da vida do sujeito que ele já opera mais por colecionismo. Não li mais da metade dos livros do Bolaño, mas tenho todos. Assim como do Levrero também. Do Levrero acho que tenho até mais, porque tenho primeiras edições. O Bolaño também tem umas primeiras edições bem raras, assim. Só que não gosto de tudo. E o Bolaño tem uma coisa… Eu fiz tudo por ele, sabe? Assim, por exemplo, quando o Bolaño começou a ser publicado no Brasil, eu era publicado pela Companhia das Letras, e me chamaram para trabalhar na divulgação dele aqui. Então fiz lançamentos do Bolaño no Rio, em diversas cidades. Ou seja, fiz um trabalho, fui cavalo do Bolaño, né? Divulgador da obra. Agora, eu sou fã. Acho que é esse tipo de autor que você lê um livro e sente necessidade de ler todos. Mais do que isso, é um tipo de autor, e que são os autores que mais admiro, que te dá vontade de escrever também. Você lê e aquilo te inspira, ele não te bloqueia, te trava, te retira qualquer… Ah, não, esse daí é inalcançável, quem sou eu para escrever. Não tem isso, sabe? Na verdade, ele parece te mover o tempo todo. Então tem muitos autores que fizeram, cumpriram um papel semelhante. Então certamente me tornei um bolanhólogo em algum momento, mas tive contato com outros autores que cumpriram esse papel também.
Quais?
Paul Auster, por exemplo. Fiquei tristíssimo com a morte dele, de passar mal mesmo, e nem imaginava que isso pudesse acontecer. Outro exemplo é o Piglia. Estou lendo a biografia do Piglia, que saiu semana retrasada. É um perfil, na verdade. Mas antes disso teve outros, Murilo Mendes, por exemplo, o Duda Machado, Oswald de Andrade, Rubem Fonseca… Num momento qualquer dos anos 90, quando meu amigo Beto fala assim, você já leu Rubem Fonseca? Eu falei quem? Porque pra mim só existia poesia, crítica de poesia… Então ele me deu um livro do Rubem Fonseca e fui ler. Daí falei, caralho, quer dizer que existem escritores de ficção que estão vivos. Nesse período eu não era mais um leitor de ficção. E aí descubro, tem um professor na faculdade que me apresenta, você já leu Valêncio Xavier? Eu falei, quem? Não, tome aqui, vai ler. Um outro amigo, já leu José Agrippino de Paula? Então foram descobertas todas do período de paixão pela Tropicália, de obsessão pelo modernismo e pela Tropicália, em 1990, 1995, 1996, por aí. E o Bolaño veio depois. O primeiro Bolaño que li foi em dezembro de 2003. Por conta da internet, descobri a existência de Roberto Bolaño e de Enrique Vila-Matas ao mesmo tempo. E soube do Bolaño porque ele tinha morrido. Eu li alguma matéria, apareceu e tal. Tinha uma amiga, tenho uma amiga, Anamaria Bacci, que mora há muitos anos na Argentina. Anamaria ia vir para São Paulo e falei Ana, traga por favor os Detetives selvagens e História da Literatura Portátil. E ela trouxe. E eu pirei. Aí eu li aquela merda, que é aquela edição de bolso vermelhinha. Falei, caralho, que porra é essa. Enlouqueci total. É o livro mais divertido que li dele. Mas rolou uma coisa meio esquisita. Li os dois e falei assim, caralho, lembra um pouco o Não há nada lá.
Era uma das perguntas que tínhamos aqui. Parece haver certa irmandade entre vocês.
Porque isso foi em 2003. Lembro que li nas férias de 2003, na virada para 2004. Falei, nossa, lembra demais essa coisa de recuperar autores verdadeiros. No caso do livro do Vila-Matas, é mais evidente isso. Até mesmo o aspecto episódico, não sei se vocês leram esse livro dele. E falei, porra, têm pontos de toque assim que… Aí sempre dizem, falam assim, pô, o Joca copia o Bolaño e eu falo, cara…
Você acha que essa comparação se deve ao quê?
Tenho a impressão de que a gente vem do Marcel Schwob. Vem do Vidas Imaginárias, do Schwob. E depois vem do História Universal da Infâmia, do Borges. Particularmente o Não há nada lá, e particularmente esses livros do Bolaño, assim, parece que é aquele tipo de biografia inventada que o Marcel Schwob escrevia. Quer dizer, nem foi ele, foi o Plutarco ou sei lá quem inventou.
Tem também na coleção Otra Língua o A sinagoga dos iconoclastas, do Rodolfo Wilcock.
É tudo da mesma tradição, acho. A literatura nazi talvez seja o Bolaño dessa linhagem. Eu só fui ler depois. Então é um parentesco anterior a eu conhecer a existência desses livros.
Sua linguagem, porém, é muito diferente da do Bolaño.
Não há nada lá é mais empolado, assim, né? É ficção de poeta ali, mas com uma linguagem meio anacrônica. Já me perguntaram sobre isso e eu falei que escrevia de um jeito anacrônico. Não era um grande leitor de ficção contemporânea, mas mais do que isso eu também entendia que os personagens são históricos. Então a linguagem, de algum modo, tinha que refletir isso. Hoje entendo que não deveria ser assim. Se eu fosse escrever hoje, acho que a linguagem ia ser mais simples, mais depurada. Acredito que a simplicidade ou a clareza vão aumentando com a passagem do tempo. Quanto mais você escreve, mais experiência tem, uma percepção da língua, daquilo que você quer exprimir, da forma com que você quer usar a linguagem. Então isso muda com a passagem do tempo. Eu não me reconheço mais no texto.
PROCESSOS DE ESCRITA E CENA LITERÁRIA
Você escreve todos os dias, tem uma rotina?
Nos últimos meses, o ano passado e esse ano, peguei muitas traduções por conta das exigências da sobrevivência. E também tenho sentido um pouco de cansaço.
Para mim, a situação ideal é escrever todos os dias, porque romance não dá para escrever aos domingos, sabe? Virar um escritor dominical. Só que, no entanto, nos últimos meses é o que virei. Quer dizer, com exceção de alguns meses em que pude de fato escrever. Tem o livro que estou escrevendo agora. É um livro que tem sete partes e imagino que cada parte vai ter, sei lá, uns 100 mil caracteres, mais ou menos. Escrevi esses 100 mil da primeira parte, agora tenho que escrever as outras.
O que tenho conseguido é abrir uma exceção irresponsável de, às vezes, escrever uma linha ou fazer uma anotação no meu caderno. Isso já me deixa satisfeito. Porque tá tudo tão atrasado nas coisas que tenho para entregar…
O ideal é escrever todos os dias. E eu preciso fazer ao menos uma anotação diária sobre o livro. Senão, fico frustrado. Saio dando patada no elevador, sabe? Nos vizinhos. Fico mal educado, esse tipo de coisa. Atrapalha bastante a minha vida.
E quando você sabe que é hora de finalizar um projeto?
Quando faz clique, é um bom momento. Quando as coisas começam a fazer sentido. Mas, por outro lado, tenho diversos livros iniciados em diversos estágios de evolução. E eu olho pra eles. De vez em quando abro a pasta, olho. E sei que nunca vou conseguir voltar a eles. Porque exigiria uma disposição que não tenho mais. Exigiria um retrabalho. Porque preciso acreditar na linguagem do texto, sabe? E isso muda com o tempo. E preciso acreditar, essencialmente, na necessidade daqueles… Daquelas coisas, sabe? Porque, às vezes, são coisas que te interessam em determinada fase da tua vida. E depois você já nem entende mais porque se interessou tanto por um determinado assunto.
Então olho com pena para esses fragmentos e coisas a meio caminho, natimortas. Mas o que me dói mesmo é não ter o tempo necessário para escrever aquilo que estou desejando escrever no momento presente. Porque é isso, acredito que é uma solução quase existencial. Já não consigo mais não escrever. Sei lá, dá pra pensar em não publicar, já que, na verdade, tá cada vez mais difícil publicar. Mas escrever é uma coisa inevitável para mim, porque é a maneira que uso pra interpretar o mundo. A minha própria vida. Estar na vida. Assim como a leitura, evidentemente.
Só que, no meu caso específico, preciso ler, e preciso escrever. Se não consigo, isso acaba me afetando terrivelmente.
Você tem algum medo em relação à própria escrita?
Tenho em relação ao que já escrevi. Se estiver escrevendo um livro como esse agora, ao qual não tenho tido tempo para me dedicar… Daí abro o arquivo, dou uma olhada, pego o meu caderno de anotações e folheio. E começo a deixar de acreditar naquilo, sabe? Porque é mesmo um exercício de fé que você dedica à própria escrita. Que envolve o não julgamento dessa escrita. E na medida em que você interrompe o processo… E às vezes a gente interrompe fortuitamente. Não é porque quer. É porque não tem tempo. E passam semanas, ou meses, ou anos, e quando você enfim se reaproxima do texto surge esse distanciamento que traz o espírito crítico e aí complica tudo. Você começa a reparar nos erros, e aí já perdeu a fé. Perdeu o texto. Perdeu a escrita. Aí você tem que criar outro processo para alimentar o desejo, o interesse por algo que vá reinaugurar o processo em outro momento, em outra coisa. Então, parte do nosso trabalho é não permitir que esse momento de descrédito, de auto descrédito, surja. Porque se pintar, fodeu. Não tem como voltar atrás.
Você costuma reler os livros já publicados?
Não.
Nem para dar uma olhada?
Não. Às vezes o Noite dentro da noite. Em geral, no período de lançamento de um livro, separo um trecho qualquer para, sei lá, numa eventualidade, ler um fragmento em algum evento, coisa assim. Normalmente, o que reli dos livros se resume a esses fragmentos escolhidos para essas ocasiões específicas. O Noite dentro da noite eu nunca reli inteiro, desde que foi publicado. Então só li um fragmento ou outro.
Acho que a frase não é sua, mas você já disse que são os defeitos que formam o estilo de um autor. Quais são os defeitos que você considera que se tornaram suas marcas?
Acho que os defeitos talvez se pareçam ou tenham aspectos de similaridade com as próprias qualidades que nós temos. E isso depende muito do… Do ponto de vista, talvez. Por exemplo, escrever um tipo de ficção que procure conceber uma espécie de mundo privado, particular, que seja explorado nesses livros. Me parece que é uma limitação muito grande hoje em dia, em que as pessoas querem se reconhecer na leitura dos livros. Nesse período em que o livro tem um papel um pouco de espelho. Então você vai ler e precisa se ver refletido naquilo que está lendo. Dessa forma, se o autor trabalha com preocupações muito específicas, com obsessões que se repetem, com elementos que possam soar meio perturbadores para essa ordem de coisas, acho que isso pode ser lido como um defeito. Mas, por outro lado, também pode ser lido como uma grande qualidade. É até um clichê quando se diz, ah, não, é um escritor que conseguiu criar um mundo próprio e tal.
Agora, desde que comecei a publicar ficção, sempre entendi que isso fazia parte do trabalho de um autor de ficção. Quero dizer, a concepção de uma realidade particular, que evidentemente tem elementos da ordem do comum e que procuram ser universais, mas que às vezes são também restritivos. Por outro lado, também têm coisas mais ligadas ao caráter estilístico, isto é, ao jeito de escrever. E aí incluo, por exemplo, essas mesmas preocupações que tenho com a temporalidade das histórias. Pode ser um elemento que dificulte a leitura de um leitor que não tenha predisposição para ler um livro fragmentado, que vai e vem, que possui uma temporalidade anômala. É um defeito ou uma qualidade? Não sei.
Na biografia do Piglia que estou lendo tem um momento em que ele menciona a Josefina Ludmer, grande crítica argentina. Eles foram casados. E aí numa passagem ele menciona algo que ela falava, que a literatura que interessa para um determinado tempo, ela jamais seria reconhecida como literatura pelo leitor médio daquele mesmo tempo. Porque ela pode vir sob a forma de um texto completamente antiliterário. Um texto mal escrito, um texto… Eu penso, sei lá, no André Sant’Anna, que é um cara cuja literatura eu admiro muito. Se você der um livro dele para um leitor médio, ele vai dizer “que porra é essa?”. Ele só vai ser entendido daqui a… Se for, né? Se ainda existir o futuro e o livro, e o interesse de alguém por ler qualquer livro que seja. Mas o André tem esse problema, ele está adiantado em relação ao tempo dele. Acho que o trabalho de limpeza ou de ajuste estilístico do texto de um autor deve buscar ir contra a linguagem do seu tempo.
O que te incomoda na literatura de agora?
Ah, acho que o caráter de vulgaridade. É uma vulgaridade que nem é percebida por quem pertence ao cenário. Tem a ver com a presença necessária nas redes sociais. Fazer uma espécie de colunismo social diário, sabe? É involuntário ou voluntário, depende. O uso da própria aparência ou da sua conformação física como parte do pacote de venda. Isso não tem nada a ver com literatura, não tem nada a ver com escrita.
E você acha que aqui no Brasil há mais influência do mercado do que em outros países?
O tempo todo você tem que vender sua subjetividade de forma parcelada. Eu não sei se em todos os lugares é assim, mas acredito que seja. Chega um ponto em que até o próprio papel das editoras se torna vago ou desnecessário. Se um autor obtém grande popularidade e decide publicar seus livros usando as redes sociais para vender, me parece que as grandes editoras não têm muito mais o que fazer. Nem as livrarias. Às vezes seu papel beira o supérfluo.
No Brasil em particular há autores que se beneficiaram, se tornaram fenômenos de venda, e isso às vezes me impressiona. Eu me pergunto até onde foi determinante o papel das editoras para que esse fenômeno se concretizasse. Se foram realmente eficazes e fundamentais ou se seria algo que ocorreria inevitavelmente e depois seria entendido apenas como um fenômeno de mídia. Porque as editoras são espertíssimas, nunca publicaram tanto.
E, por outro lado, vivemos um momento estranho e ambíguo. Eu faço esses comentários críticos, mas também nunca se leu tanta literatura brasileira. Em volume, em números. Não é um autor que é best-seller, são muitos, diversos. Não estou fazendo aqui qualquer juízo de valor daquilo que é produzido ou vendido, mas me parece uma verdade incontornável: o ranço em relação à ficção produzida no Brasil foi superado, em certa medida. Agora, vai saber se é algo de momento, se é artificial, se vai perdurar, até onde vai. O que vai acontecer é difícil dizer.
E por que você acha que os brasileiros, além da questão da língua, não são tão lidos no resto da América Latina — na Argentina, por exemplo?
Olha, os brasileiros não são lidos porque, em geral, há um problema de ausência de pessoas em situações-chave com proficiência em português — tanto na avaliação editorial quanto na tradução. São raríssimas as editoras, por exemplo na Alemanha, que têm alguém capaz de ler literatura brasileira bem o suficiente para avaliar. E depois vem o segundo passo: ter tradutores à altura. Quando isso não acontece, o resultado é nulo. O Raduan Nassar, por exemplo, foi publicado pela Gallimard nos anos 1980 com uma tradução péssima, e não aconteceu nada. Anos depois, ao ganhar uma boa tradução para o francês, espanhol e inglês, foi parar na lista do Booker Prize. Isso mostra que o problema não é a literatura em si, mas a mediação.
Faltam tradutores, mas falta também um esforço institucional da parte de cá. O Brasil deveria ter algo como um “Instituto Machado de Assis”, nos moldes do que Portugal faz com sucesso. Os autores portugueses são traduzidos para 20 línguas, mesmo quando não têm expressão em vendas, porque existe uma instituição que trabalha isso como commodity. É um problema político e comercial. Ou se pensa o que é produzido como valor a ser vendido e divulgado de forma organizada, ou não acontece.
Na América Latina a situação piora: há ignorância e desinteresse em relação ao Brasil. Além disso, existe uma visão de rancor, de ressentimento, porque o país é visto como imperialista, com predomínio econômico e político massivo na região. Vá à Bolívia ou ao Paraguai e diga que é brasileiro esperando carinho ou lembranças ao Ronaldinho — não é assim. Claro que existe a simpatia turística, pontos de diálogo, mas, fora isso, o desconhecimento é enorme. Para muitos, o Brasil é apenas um grande país africano encravado no meio da América hispânica.
Para que serve um prêmio literário?
Puta, eu não sei, cara. O Goncourt, por exemplo, é um troço que tem 100 anos de existência, tem tradição. Quando alguém ganha, na hora o editor manda imprimir 300 mil exemplares, porque vai vender. Esse é o mínimo, mesmo que seja um livro difícil. Então a chancela é essa: um prêmio que garante alcance.
No Brasil não dá para dizer que Torto Arado vendeu porque ganhou prêmio. É difícil fechar qualquer equação de interpretação, mas a ideia, em princípio, é essa: prêmio como chancela que gera leitores. Eu odiaria ter um livro premiado e vender meia dúzia. Não faz sentido.
Agora, existe também uma chancela menor. Ainda que prêmios criem tradição em torno de si, nem sempre o livro premiado será lembrado. Quem ganhou o Prêmio São Paulo no ano passado? É um tipo de prêmio que parece não mudar muito a história de um livro. O que deveria haver mais, e não tem, são bolsas em todos os níveis.
No México, por exemplo, há muitas bolsas, mas claro não é garantia de nada. Existe uma guerra entre autores, panela contra panela, acusações públicas. E nem sempre o apoio gera qualidade. Não há relação direta entre subsídio e resultado obtido — é algo inquantificável, inqualificável. Mas lá existe algo interessante: a Fundação Octavio Paz. Ele era rico, ficou ainda mais com cargos diplomáticos e, ao morrer, botou sua fortuna num fundo que virou uma fundação para escritores. Todo ano distribuem bolsas para jovens, que recebem cerca de 800 dólares por mês durante dois ou três anos, com contrapartida de produção e aulas.
Você ganhou um prêmio literário muito cedo, não?
Ganhei, mas eram menções honrosas. Duas menções honrosas: o Curva de Rio Sujo e o Não há nada lá. Depois ganhei outra, da Revista Cult, que na época era muito diferente do que é hoje — era uma revista de literatura mesmo, importante nos anos 1990 e início dos 2000, com encarte, divulgação de autores novos, crítica. Acho que foi o canto do cisne em termos de suplemento cultural. O Manuel da Costa Pinto era o editor, muito democrático, publicava novos e velhos.
Ganhei também o Machado de Assis da Biblioteca Nacional, esse um pouco mais importante, porque tinha prêmio em dinheiro. No ano seguinte ao que eu ganhei, porém, dobraram o valor. Essa é minha história com prêmios: campeão da menção honrosa. Agora ganhei o APCA, que não dá nada. Nunca recebi um e-mail dizendo que ganhei, soube pela imprensa. A única coisa que eles dão é uma estátua bonita, do Francisco Brennand, que eu quero muito. Estamos esperando para ver, aparentemente vai ser em junho. De resto, só as menções honrosas.
Mas, de fato, o mais importante para mim foram as duas bolsas Petrobras de criação literária.
O que você faria se não fosse escritor?
Eu não sou escritor. Só sou escritor quando estou escrevendo meus livros. No resto do tempo, sou tradutor, editor, cozinheiro. Aliás, cozinhar é o que eu melhor faço, segundo algumas pessoas. Tudo: trivial, variado.
Mas não sei se gostaria de ser apenas escritor. Meus maiores momentos de crise, em geral, são crises com o trabalho intelectual. Nesses momentos, penso que gostaria de ser mecânico. Eu tinha um tio, o tio Ulisses, de quem eu mais gostava. Ele era mecânico, mas mecânico de verdade, de trator, dessas coisas pesadas. Acho que eu gostaria de ser mecânico também.
E se não fosse humano, você seria o quê?
Será que eu sou humano? Nessa altura, será que somos humanos? Acho que essa ideia da ficção orientada pelo organismo tem a ver com esse questionamento. Será que ainda somos humanos? O que define a nossa humanidade?
Eu tenho minhas dúvidas. Cada dia que passa a gente se torna menos humano — essa é a verdade. Não ter tempo nem para coçar o saco é das coisas mais desumanas que existem. Ficar de papo pro ar, pensando na morte da bezerra ou simplesmente sonhando… Se não há tempo para sonhar, esse parece um sintoma confiável de que já deixamos de ser humanos.
- Lugar que aparece com frequência na obra do autor, como ficará claro no decorrer da entrevista. ↩︎
- Quando tinha 8 anos, Joca Terron bateu com a cabeça em uma viga de concreto na escola enquanto brincava de esconde-esconde. Em consequência, foi diagnosticado com disritmia cerebral e posteriormente sofreu problemas de memória ↩︎
- A Coleção Errar Melhor, coordenada por Joca na editora WMF-Martins Fontes, estreou no final de 2024 e conta com 5 títulos até o momento. O entrevistado explica que o exaspero manifestado na entrevista se deveu à ansiedade prévia à publicação dos mesmos. ↩︎
*
Joca Reiners Terron nasceu em Cuiabá, em 1968. Escritor, poeta, dramaturgo e editor, publicou, entre outros, Do fundo do poço se vê a lua (Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional, 2010), Noite dentro da noite (2017), A morte e o meteoro (2019) e Onde pastam os minotauros (2023).
Consulte a página de Joca Reiners Terron no acervo de MUTUM
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