o espanto sutil e a ecologia dos românticos
Um adeus a Leonardo Fróes (1941-2025)

Há algo de simbólico na morte do poeta e jornalista Leonardo Fróes (1941-1985) ter sido anunciada no dia em que o Brasil encerra, em Belém, um evento que discute modos de reduzir as alterações climáticas e preservar a natureza.
Não que Fróes acreditasse na eficácia das conferências. É provável que não. A coincidência é mais um retrato do pioneirismo do poeta: quando o assunto da degradação ambiental parecia só alarmismo, o autor se mudou com sua mulher para um sítio em Petrópolis, região serrana do Rio, onde se dedicaria ao cultivo da terra até o fim da vida. Era o início dos anos 1970. O ar brasileiro já estava mais espesso. O solo começava a erodir.
Fróes tratou a poesia como lavoura. Fez dos versos um hábito e um exercício de paciência. Enxergava no mundo natural os grandes mistérios da vida. Suas matérias foram os frutos, os animais, as árvores, mas também as dores humanas e as sensações e os nomes embrenhados na natureza. Os pés na terra, as miudezas, o sexo.
Boa parte da obra do poeta de Itaperuna amadureceu com a “ecologia dos românticos”. Assim definia o pensamento de Fagundes Varella (1841-1875), poeta romântico que o influenciou e a quem dedicou um livro ensaístico, o belo “Um outro Varella” – e do qual publicamos um fragmento abaixo.
Fróes e Varella escreveram poemas contrários “à postura técnica, política, útil para o homem” da ecologia atual. Defenderam que o homem se visse como uma espécie entre espécies, sem dominações. Fróes, mais expansivo, foi ainda mais longe: tornou a gentileza seu modo de estar no mundo. Grande poeta, nunca deixou de lado seu maior trunfo – a sutileza dentro do espanto. E é com tal estado de espírito que devemos lê-lo.
Abaixo, seis poemas e um fragmento em prosa de Leonardo Fróes
AO SONHADOR, O INVETERADO
Essas figuras que o desejo desenha me renovam. São tão variadas
que nem sei de onde vêm ou a que fim se destinam. Quanto pesam,
de que valem, o grau de permanência em seus contornos são temas
que certamente irão me devorar mais um dia. Ficarei,
vendo as manchas que elas criam na janela do ônibus, pensando
na evidência dos anos e na resistência dos sonhos. Quantas horas
os olhos derramaram assim, sem alvo certo. Os planos largos
e sonolentos ou não logo esquecidos no banco. Essas figuras,
eu sei, irão continuar a meu lado inatingíveis rolando para dar,
elas que nem possuem forma, consistência à existência. Movimentos
no ar do qual me torno parte sem perceber
transições. Lições de nada que me deixam vazio,
no entanto imenso, participando desse quebra-
cabeça montado sem finalidade na moldura infinita que não se encaixa.
ALGUMAS VARIAÇÕES DE CULTURA
A cultura da couve, que exige um trato delicado e água perto para dar folhas tenras. A cultura
do milho, que se disfarça às vezes em mulheres viçosas.
As socas de capim que constituem tamanha
sabedoria natural sobre os morros. A cultura da morte,
que não dá sossego, ou mesmo na cultura do sono
a descoberta arregalada dos olhos pensativos no céu.
A cultura curiosa da satisfação em te ver
após o banho. A sanha cultural dos sanhaços
bicando um mamão maduro no pé. A poeirenta
Kultur que se agasalha com tosse pesquisando venenos
na obra do poeta imaturo que abriu os braços no abismo
e mergulhou gargalhando para os pósteros.
O caldo espesso das culturas nanicas
que proliferam pela madrugada em esquinas
onde mosquitos invisíveis telegrafam na luz.
Os ombros bambos da cultura na cama
com essa impressão de cicatriz das suas unhas nas costas
raspando escamas ou camadas de conotação babilônica.
A cultura do êxtase. O encadeamento despojado
dos objetos sem função quando alguém
não se procura, não ensaia, não tece elogios, não discute.
A cara calma da pessoa calada que desaparece de cena
para observar seus iguais com paciência de boi.
Aquela pressa dos pacotes que estão vendendo cultura
e a falta que uma escova de dentes, no outro extremo,
faz na boca do povo.
De “Argumentos Invisíveis”, de 1995
*
CIÊNCIA EXPERIMENTAL
O fato pode ser, à luz de um vidro,
brilhante ou fosco, passageiro ou triste.
Depõe armas de asco aos pés do vício
ou, hirto, um brasão cria no espaço.
O fato pode ser, pode não ser.
Depende, pois é misto, de um bom clima
propício à floração: tanto no espelho
luzidio da sala quanto numa
espátula de safras num canteiro.
O manto do real, que é? Um selo
lacrando a boca infame de uma fábula
contada com cinismo ao nosso medo.
O fato pode ser, pode não ser.
Mas a memória, irmão, essa não falha.
De “Língua Franca”, de 1968
*
MISSAL SEM CERIMÔNIA
Certo ar de falência, certa estrela
na testa, certa sorte bifronte, certos
objetos entesourados
no fundo de uma mala, certa mágoa
ambígua, o som de certos ambientes, a
impressão incerta de estar numa
travessia sem freios, a defesa
de certos itens na lembrança
caolha, certos
calafrios sem causa, o grau
de inocência e tristeza em certas horas
sombrias, a importância de certos
detalhes, a pergunta não feita e sua certa
resposta incerta, o brilho
anterior a certos sinais dados
pela palavra espanto.
De “Esqueci de avisar que estou vivo”, de 1973
*
JUSTIFICAÇÃO DE DEUS
o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
De “ Sibilitz”, 1981
*
QUESTÃO DE RESPEITO
Digo bom dia para o sol
logo que acordo e abro a janela.
Depois eu cumprimento as rolinhas
que fazem ninho na varanda.
Elas respondem cururu cururu.
O sol se mantém calado. Mas brilha
com maior intensidade e me esquenta.
De “A pandemônia e outros poemas”, de 2021
Abaixo, um excerto de “Um outro Varella”, livro de 1990 que podemos chamar de reportagem lírica. Na obra, Fróes acompanha Fagundes Varella (1841–1875), poeta pioneiro da sensibilidade ecológica. Este é o primeiro fragmento.
UM CONVITE AO PERSONAGEM PARA SE TORNAR O QUE É
Se a terra for um grande organismo, é possível que exista uma poesia da terra — o falar da natureza que usa os sons mais distintos, e mais puros, para dar a conhecer seus diferentes estados. Cada sonoridade da água expressa uma maneira de ser, diz se a água em questão é um lago manso, por exemplo, ou uma cascata espumosa. Mas, seja revolta ou uniforme na tona, a voz profunda de uma água transmite imagens de fluxo, como a do vento é um dialeto mutável que ou acaricia ou fustiga. Da orquestração de tantas vozes, e tantas modulações em cada espécie, compõe-se a melodia da terra, a canção do equilíbrio. Passos de formiga passando, fluir de areia, tudo conta. Existe uma expressão geral sendo feita. Se é um grande organismo que está falando, somos, pessoas e coisas, partes de uma mesma conversa, partículas de uma explosão, uivos de uma mesma alegria, particularidades do todo.
Para continuar a ouvir a voz da terra, do Piraí, da Bocaina, que ouvia desde criança, Varella se afastou das cidades, quando adulto, e resolveu “*Gastar os dias entre o espaço e Deus”. Não tinha compromissos com nada e andava léguas,de lugar em lugar. Ou melhor: tinha um compromisso poético, sabia que fazia um trabalho, e no fim de sua vida difícil, desregrada, desesperadamente criativa e livre, escreveu O evangelho nas selvas para catequizar leitores. Mais de oito mil versos, em duros quatro anos de estrada.
Libertário como D. H. Lawrence, bebedor e demolidor de tabus como um beatnik, ele nunca se adaptou às regras do jogo. Combateu a sociedade com acerba determinação e sarcasmo. Desempenhou o papel de ultracantor do romantismo caboclo, tendo encontrado razões objetivas para se abater e penar. Sua obra, ao mesmo tempo, está toda impregnada de vozes que são ouvidas no espaço. Não apenas árvores e rios falantes, mas também espíritos na atmosfera dizendo, com uma certeza cristalina, que há uma “luz das luzes”. Ao andar sem destino, na exuberância dos quadros tropicais, esse doido e proscrito, como ele mesmo se considerou, acabou contatando uma extraordinária harmonia. Da poesia da terra, foi içado para fora de si — “Somos o fluido eterno, que circula”” — a uma participação intensiva na poesia do cosmos.
Fagundes Varella (1841-1875) foi também um tropicalista avant la lettre, se considerarmos seu fascínio pela terra da América, a noite, o mar, as montanhas, e um grande investimento simbólico na idéia de um mundo novo mais puro, de resto compartilhada por outros jovens da época. Autor de letras de modinhas que fizeram muito sucesso, poeta reconhecido desde a estréia, ajudou a difundir no país, junto com a melancolia de praxe para um ultra-romântico, um sentimento positivo de orgulho pela terra natal. Formados pela tradição européia, os poetas brasileiros do romantismo deram um toque caipira espontâneo ao que importaram, e essa parece ser sua índole, e Varella, do processo, é um caso típico.
Em contraste com a ecologia atual, que tende às vezes a uma postura técnica, política, útil para o homem mas defendendo a preservação, basicamente, só para o nosso bem-estar, a ecologia dos românticos tem uma qualidade afetiva que lhe imprime outro alcance. Não propõe que os demais bichos fiquem subordinados ao homem, como a perspectiva bíblica, e sim que o homem se comporte como espécie entre espécies, aprendendo a dar a cada uma o máximo de compreensão e respeito. O bem-estar, parece implícito, resultará da harmonia que se fizer no planeta, com todas as energias possíveis, sobretudo as que não vemos, liberadas para se realizar plenamente.
Partindo da delicadeza poética e da imersão supra-sensível no todo, a ecologia dos românticos chega a uma sacralidade instintiva. Em Varella, em seus contemporâneos aqui e em vários momentos do que se passava na Europa, o sentimento de respeito pela vida é tão grande que se torna um ardor religioso. Mas que diverge da religião dominante e ostensivamente a combate por ela estar representando o poder. Em Varella, esse ardor religioso adquirido em andanças e contemplações solitárias leva à mensagem de um cristianismo ainda casto, voltado para a beleza moral, que está no seu Evangelho e é teatralizada nas selvas, com um toque índio e comunoprimitivo em realce. Na Europa, e especialmente no romantismo alemão, o cotejo se oferece de pronto com a idéia de uma ““igreja invisível”, que reuniria espíritos voltados, e ninguém sabe como, para uma mesma destinação transcendente. Ideia que surge em Goethe, Jean-Paul, Novalis, Hoffmann, e que reaparece, em nossa época, em Herman Hesse. Não tomar existência mas manifestar-se em segredo, além do tempo, sob a urdidura do poder e as tramas da hierarquia eclesiástica, seria a razão de ser dessa igreja, que para Marcel Brion é uma “’igreja implícita” — a da experiência. Vivemos para constatar o sagrado, que é muito simples: tudo o que vive é necessário, cada coisa deve ser convidada a se tornar o que é. Assim, para um romântico, que tantas vezes é também um orgíaco, um delirante, o supremo prazer é ouvir a orquestra do cosmos, a partir da afinação dos instrumentos mais ínfimos.
O progresso do espírito, o apuro da sensibilidade no espelho da natureza, e não apenas nos limites humanos, foi reação do romantismo à Aufklárung, ao racionalismo dos salões associado à prudência e às conveniências burguesas. Ernest Theodor Amadeus Hoffmann, que reprovou a ““secura interior”? de sua época, considerou-a um tempo infeliz em que.““os espíritos elementares, prisioneiros em suas esferas, não falam mais aos homens, a não ser bem de longe e em ecos sem ressonância””, e em que os homens, banidos da harmonia do ambiente, tendo perdido o amor e a fé, afogam-se numa nostalgia infinita. O fervor místico e natural, em Varella e seus pares, os dissidentes da nação caipira, acompanha-se igualmente de uma hostilidade ao burguês. O império cafeeiro nascente, que promoveu a primeira onda romântica mandando seus poetas à Europa, acabou sendo contestado e glosado por seus próprios herdeiros. Chega a moda byroniana como chegam os navios negreiros. O índio é idealizado, e isso pode convir, mas logo a sátira e a subversão escrachada também estão na poesia. Contestam-se os valores trazidos do século XVIII europeu. De certa forma, é o mesmo drama em novo palco, e há atitudes muito literárias em cena. Como há padrões a combater, há modelos dissidentes para amar e imitar, o que se faz em larga escala. Mas há também, nos românticos brasileiros, o dado concreto da experiência: ter nascido numa terra bonita, dengosa e carinhosa, cheia de sabiás e índias e jacarandás e luas e já começando a ser devastada, como, em muitos textos, eles denunciaram.
Nietzsche previu, para o tempo dos netos de seus contemporãneos, o advento de uma “selvageria sincera” em que a paixão iria se manifestar livremente, sem as exterioridades impostas pelas convenções. Antes, impulsivo e extremado, Varella esteve nessa linha, como Lawrence estaria ratificando Nietzsche, e ao guerrear o formalismo, o jogo de aparências, a caretice dos padrões sociais que o sufocavam, até da idéia de cidade a cuja construção assistia se mostrou descrente. A cidade burguesa, para ele, não teria jeito. Pela época em que, na mesma São Paulo, o modernismo explodiu em posição semelhante, os rebeldes românticos de quase cem anos estavam sendo convertidos em vultos, em figurões da pátria. Livros comemorativos saudavam seu nacionalismo, sua participação nas campanhas pela Abolição e a República, mas sem acentuar seus excessos, sua ““selvageria sincera” contra um estilo de vida que, morrendo cedo todos eles, não quiseram seguir. Arquivados, os românticos já não podiam dizer que sua grande aspiração era mudar a vida. O personagem deste panfleto surgiu num dia de sol. Era gostoso se sentir brasileiro, nesse dia, tendo voltado de um passeio no mato, quando chegou a informação casual de que ele era um andarilho. Atando pontas de leituras, o personagem foi tomando contorno. Sua poesia começou a ser descoberta e os encontros se tornaram freqientes. Nos limites da obsessão, às vezes, ele virava um Outro. Ou Mais Um. Podia estar presente numa galeria de tipos, ser, ao mesmo tempo, antecessor de muitos fatos e seguidor de uma família antiga, ou vincular-se a essa igreja invisível que não existe, que atua sem forma. Podia ser William Cowper, ou William Blake, que também ouviam vozes no ar, ou Karl Philip Moritz, que também seguiu uma troupe de cidade em cidade. Vidas desgarradas no espelho. Um leque de situações conflituosas. As múltiplas dificuldades do espírito diante dos papéis sociais.
Mas em momentos de condensação de leitura, unificando-se, o personagem tomava um rosto fixo. Era preciso desenhá-lo e a intimidade cresceu. O personagem perdeu o nome Fagundes, transformou-se no Varella dos papos, um familiar, mas também um desconhecido, e acabou como Luiz Nicolão, jovem poeta cabeludo “que já seria outra hipótese. “On ne connait jamais un être, on cesse parfois de sentir qu’on l’ignore”*, como disse Malraux. O importante foi se tornar companhia e conviver, em horas de recolhimento, com sombras. Uma experiência fantástica. Você pega o personagem na chuva, sobe com ele a mesma escada, conhece sua roda de amigos, convida-o, por admiração e afinidade, a se tornar o que é. Um Outro. Ou simples tentativa de.
* em tradução livre: “Nunca conhecemos de fato alguém, mas às vezes deixamos de sentir que o ignoramos.”
De “Um outro Varella”, de 1990